TPM

Há um fenômeno muito engraçado aqui em Salvador. Na realidade, talvez seja nacional. Quando se é adolescente, todo adulto é tio ou tia. Na escola, tem o tio da portaria, a tia da cantina, o tio do corredor, a tia da biblioteca...

Se vamos à casa de um coleguinha brincar, ou fazer um trabalho de escola, já no primeiro encontro, rola:
- Ô, minha tia, cê me dá um copo d’água?
Como assim, “minha tia”?! Como assim?!

Os pais de minha primeira namorada eram, também, tio e tia. E isso é tão forte que, caso os encontre hoje, quase 20 anos depois, chamá-los-ei de Tioeduardo e Tiarregina.

Os amigos dos nossos pais, quando nos são apresentados, já vêm com o título acoplado à alcunha:
- Junior, venha conhecer Tiamaricotinha.

Tiassolange se encaixa neste caso. Amiga de minha mãe, se conheceram trabalhando na Biblioteca de Alexandria e, desde então, são inseparáveis. Ambas tiveram três filhos: duas meninas e um varão, sendo, este, o do meio. Crescemos juntos e nos chamávamos de primos de consideração. Era ótimo.

Tiassolange é uma figura. Comi incontáveis cozidos na casa dela, dormi inúmeras vezes lá e recebi diversas broncas... daquelas que somente os que amam dão. Vale ressaltar que todas muito justas. Afinal, quebrar parte do santuário no corredor com uma bolada porque eu e Fabinho batíamos baba dentro de casa a despeito das ordens contrárias era passível de surra, né não? E logo a Nossa Senhora. PQP, a Nossa Senhora não!

Tiassolange é uma das pessoas mais religiosas que conheço. Sempre me agracia com um “Vá com Deus”, “Deus te abençoe” ou algo do gênero. E, apesar de não ser um homem de fé, invariavelmente respondo “Amém”. Não por hipocrisia, mas por respeito à fé de quem tanto amo.

Certa feita, comendo um peixe, um pedacinho de espinha enganchou na garganta de Tiassolange, causando um grande desconforto. Comeu miolo de pão, bebeu água, pirão, farinha, mais peixe... nada resolvia. Com o passar do tempo, ela ficou tão avexada que Tiazezé decidiu levá-la a uma emergência hospitalar para ter o fragmento do endoesqueleto daquele saboroso pescado deglutido no almoço retirado.

Peregrinaram por três diferentes clínicas, mas nenhum médico deu jeito. Um sufoco. Pouco antes de desistirem, foram ao Hospital Universitário, onde um interno a atendeu. Quando saiu do consultório, feliz e satisfeita, Tiassolange avistou Tiazezé, com o terço na mão, rezando e entoando, alto, cânticos para Nossa Senhora:
– Resolveu?
– Graças a Deus.
– Eu devia ter cantado pra Nossa Senhora ainda na primeira clínica. Nos pouparia tanto trabalho!

De fato, admiro e respeito a fé, apesar de desconfiar, a princípio e por princípio, das religiões cristãs. Mas esta é uma outra história.

Confesso que acho divertida a crença de que descendemos de Adão e Eva. Essa coisa do Paraíso, do Fruto Proibido... sei não. Pra começar, não podemos respeitar um cara que cobre seu membro com uma folha de parreira. Como assim, uma folha de parreira?! Só pode ser piada divina. Não me admira que Eva tenha ido atrás da cobra.

Mas comecemos do começo... que era o verbo. Deus, depois de criar o mundo e os bichos todos, fez Adão à sua imagem e semelhança (e, ainda assim, uma folha de parreira era suficiente). Os bichinhos lá, felizes brincando de médico, enquanto Adão, sob intenso bombardeio dos seus hormônios, sofria com dor de ovo.

Percebendo que cometera uma grande injustiça com seu filho, O Todo-Poderoso gerou, da costela do mancebo, Eva, um subproduto do macho. Aparentemente, o tiro saiu pela culatra. A gostosa da Eva deveria apenas fazer companhia ao rapaz, mas, sabe como é... inspirou-se com a cobra e serviu-se do que estava escondido atrás da folhinha. É o famoso “não tem tu, vai tu mesmo”.

Assim, cometeram o chamado Pecado Original. E o troço era tão bom que a maionese desandou. Era um tal de atrás da árvore, no rio, na relva, na moita, que O Pai, depois de não ter mais argumentos, resolveu castigar a causadora daquela bagunça e estipulou que, de tempos em tempos, ela sangraria por alguns dias.

Bem... mini adiantou, mas, depois de um tempo dando um tempo naqueles dias, Adão criou o primeiro ditado de que se tem notícia: “O bravo marinheiro se aventura até no Mar Vermelho”. E voltaram à rotina de luxúria e pecado.

Papai do Céu, então, tentou sua última cartada contra a megera que enlouquecera seu Filho: criou a TPM. Foi aí que o bicho pegou. Nos dias que antecediam a sangria, se Adão desse bom dia, Eva retrucava: “Por quê?!“. Objetos e animais eram arremessados contra o filho do Sogrão; rios de lágrimas corriam sem motivo e, caso tentasse ajudar, Adão era prontamente culpado por todas as mazelas que aconteciam no mundo.

Por isso que afirmo: é um erro perguntar às mulheres se elas sofrem de TPM. A pergunta certa deve ser: “Seu marido sofre de TPM?”. Porque vamos combinar uma coisa, garotas: PQP, é foda! Haja paciência.

Cheguei ao ponto de sugerir que minhas colegas de trabalho tomassem pílula para ciclarem juntas, pois quando uma está saindo da TPM, outra está entrando. O resultado é que eu passo o mês recebendo patadas. Seria muito melhor concentrar tudo numa única semana e gozar de paz em outras três.

Quando minha amiga Duda t. celebrou o aniversário dela em 2010, já no finalzinho da festa, quando restou apenas a diretoria, a TPM, assunto recorrente em qualquer mesa que reúna maridos, esposas, namorados, namoradas, irmãos e irmãs, caiu na roda. Duda, com a veia do pescoço saltando e dedo em riste, dissertava:

– Já sou chata normalmente. De TPM, então, fico insuportável... e sobra pra Tavares. Acordo já querendo matar um e qualquer “oi” na hora errada, explodo. E no meio do dia, ainda ligo pro coitado soltando os cachorros, culpando ele pela crise monetária internacional, chorando, berrando... aí, quando ele chega de noite em casa, abre a porta com uma caixa de chocolates.

Aproximo-me do marido e cochicho no ouvido:
– A isto se dá o nome de sabedoria.
– A isto se dá o nome de instinto de sobrevivência.

Texto revisado por Paula Berbert

VIZINHANÇA

Oitenta decibéis é o limite de intensidade sonora que o ouvido humano é capaz de suportar sem risco de lesão do aparelho auditivo. A partir daí, os danos variam desde um ligeiro desconforto até perda da audição.

Já faz um tempo que ando com um protetor auricular a tiracolo. Cansei de voltar de shows e festas com o ouvido apitando. Mesmo chegando em casa exausto, aquele zunido agudo e intermitente me impedia de dormir.

E, na verdade, o que me levou mesmo a tomar esta atitude profilática não foram os enxames de abelhas dentro da minha cabeça enquanto eu rolava na cama, mas uma aluna que tive. Como parte do processo avaliativo do curso de inglês, onde ela fora minha pupila, os alunos, no final do semestre, preparavam uma apresentação oral sobre um tema de sua preferência. Ela, fonoaudióloga e dona de uma loja especializada em aparelhos auditivos, discorreu sobre os riscos da exposição prolongada a altos volumes e possíveis medidas preventivas.

No final da apresentação que lhe rendeu a nota máxima, mencionei o zumbido pós-show que me acometia todos os sábados e domingos. Após algumas perguntas mais específicas, Julia disse que eu deveria ser submetido a um teste audiométrico a fim de diagnosticar algum sinistro no meu equipamento receptor de impulsos sonoros.

No dia seguinte, fiz a avaliação e, para a minha tranquilidade, nenhuma perda foi detectada. Entretanto, fui alertado que deveria tomar cuidados especiais, pois com a alta frequência em shows de rock, os próximos resultados poderiam ser bem diferentes. Como forma de me estimular a adquirir um novo hábito, ganhei gratuitamente um protetor auricular sob medida.

Hoje em dia, fico impressionado com o volume que algumas pessoas escutam som no carro. Parecem trios elétricos. É surreal! Na segunda-feira de carnaval, parei na loja de conveniências de um posto de gasolina para comprar sorvete de chocolate e Coca Zero, pois tinha alugado quatro filmes e estava decidido a assisti-los até a hora de ir buscar Paula, minha namorada, que estava trabalhando na festa momesca. Estacionado bem na frente da entrada principal da lojinha, um automóvel com o porta-malas aberto. Dentro deste compartimento traseiro projetado para carregar volumes, havia caixas de som que ocupavam todo o espaço. Era ensurdecedor.

Esses tipos se proliferam como erva daninha. São, em sua larga maioria, homens que supervalorizam seus carros, vivem frequentando as delicatessens de postos de gasolina expondo seus bíceps musculosos, exibindo pesadas correntes no estilo gangster rapper no pescoço, dançando pagode, arrocha e forró, enquanto empunham uma latinha de cerveja, falando alto, ignorando o aviso que proíbe o som naquele estabelecimento e, pior de tudo, impondo o seu gosto musical aos transeuntes.

Acredito que há uma relação inversamente proporcional entre a potência do som e a potência dos seus donos. Mas é só uma teoria... Essa questão, porém, só diz respeito a estes ditadores musicais e suas parceiras, ou parceiros. O mais irritante de tudo é a incapacidade de compreender a importância de não invadir os espaços alheios quando se vive em comunidade. Por mim, eles podem acabar completamente surdos, desde que as sessões de audição ocorram no meio do deserto.

Confesso beirar a paranoia no quesito “não quero invadir o seu espaço”. Ainda assim, cometo deslizes. Certa feita, comprei dois brinquedos que imitam osso para Sofia e Helga. Tinha sido aconselhado por uma veterinária. Aparentemente, ao tentar roer aqueles pesados pedaços de osso processado, elas estariam prevenindo o acúmulo de placa bacteriana nos dentes. Adoraram!

No final do dia, ao chegar em casa, havia um recado me pedindo para entrar em contato a vizinha do apartamento logo abaixo do meu, D. Maria Joana (nome fictício). Nem troquei de roupa e fui lá pessoalmente. A referida senhora, não muito cordialmente, preciso ressaltar, reclamou do barulho oriundo do impacto dos novos brinquedos e o piso de lajotas do meu lar. Antes que eu pudesse tentar argumentar, um trovão ecoou na sala de jantar dela... e vinha lá de cima, da minha casa. Pedi desculpas e garanti que não aconteceria mais. Subi correndo e confisquei a nova diversão das cãs.

Nos meses subsequentes, pelos menos três vezes por semana, ao retornar do trabalho à noite, encontrava o meu quarto completamente incensado com o característico aroma da erva maldita. E, cá entre nós, não gosto do cheiro. Chegar em casa e sentir o barrunfo impregnado no lençol, no cobertor e na fronha era foda! Irritante demais. Tudo indicava ser proveniente da janela do terceiro andar, um a menos que o meu. Entretanto, não tinha como provar. Nada contra a tia queimar unzinho. Muito pelo contrário. Mas eu odeio o cheiro.

Só tive certeza quando, numa madrugada, acometido pela minha inseparável insônia, resolvi sentar ao lado da janela enquanto tocava violão e fumava um cigarro. Depois do segundo acorde, eis que sobe a fumacinha característica e impregna minhas narinas. Debrucei-me no parapeito, olhei para baixo e me deparei com uma mão feminina, apoiada na janela de baixo, segurando um baseado. A coroa do terceiro andar era maconheira. Ela que sempre entrava sisuda no elevador e mal cumprimentava as pessoas era uma chincheira profissional. Mas por que somente agora, após quase 10 anos de vizinhança, a fumaça começou a invadir meu quarto? A princípio cheguei a cogitar que ela adquirira o hábito tardiamente. Acabei descobrindo por vias transversas, contudo, que a mãe de D. Maria Joana se mudara e havia deixado o apartamento para a filha. Quando os gatos saem, os ratos fazem a festa.

Meu primeiro instinto foi o de reclamar. Fazer exatamente como ela fizera. Resolvi, entretanto, depois de refletir um pouquinho, que eu, dentro dos meus princípios de bom convívio social, poderia ser mais tolerante e flexibilizar um pouco. Afinal, fumar maconha ainda é estigmatizante nesse país e ela, uma respeitável cinquentona, estava tendo a rara oportunidade de fazer isso no conforto e segurança do próprio lar. Daquela noite em diante, então, toda vez que saía de casa, eu fechava a janela.

Tudo seguia normalmente até eu comprar duas almofadonas para Sofia e Helga. Com esta aquisição, resolvi ensiná-las a somente roer os brinquedinhos confiscados quando estivessem em cima das almofadas. Elas adoravam passar horas afiando as presas e combatendo as placas. Tive o cuidado de adestrá-las no horário do almoço, pois sabia que a senhora do andar de baixo não retornava antes das 18 horas. Não foi necessário muito tempo. Fiquei surpreendido com a velocidade em que se habituaram ao novo comando. Em três dias, estavam educadas. Ainda assim, tinha o cuidado de deixá-las brincar somente sob minha observação.

Num fim de semana qualquer, enquanto eu assistia a alguma besteira televisiva, Sofia deixou o osso escapulir da boca. Este escorregou pela beirada da almofadona e tocou a lajota. Em menos de dez segundos, o interfone tocou. D. Maria Joana estava irritadíssima com a barulheira interminável que minhas cachorras faziam, segundo a própria, arrastando um maldito osso por toda a casa. Aí pirei o cabeção! Putaquepariu! A porra do osso resvalou na lajota e a coroa aloprou! Como assim, D. Cinquentona Maconheira Descarada?! Como assim?

Respirei fundo, contei até cinco mil, mantive a calma e tentei ponderar, assumindo a responsabilidade do primeiro ocorrido, mas ressaltando que desde aquela época nada mais tinha acontecido, dos cuidados tomados, inclusive do adestramento nos horários em que ela não estava. Ainda desproporcionalmente nervosa, quiçá pela ausência de THC na corrente sanguínea, disse que eu deveria aprender a ser menos egoísta e um pouco como viver em comunidade, respeitando o espaço alheio. Foi a deixa que eu precisava:

– Justamente, D. Maria Joana. Também acho de suma importância as pessoas aprenderem a viver coletivamente, serem mais flexíveis e tolerantes para que se conviva mais facilmente com as diferenças.
– Então!
– Então, não é? Há alguns meses, o meu quarto tem sido impregnado por uma fumaça vinda do seu apartamento, pelo menos três vezes na semana. E a senhora recebeu alguma reclamação? Ao invés de reclamar, fechei a minha janela.
– Erm... Veja bem... É que eu gosto de incenso.
– Incenso?
– É... é incenso.
– Sei, sei... pois quando eu era mais jovem também fumei muito desse incenso.
– ...

Este texto foi revisado por Paula Berbert

ANÃO

Há um conceito equivocado, muito comum entre leigos e alguns linguistas incompententes, de que não se aprende uma língua depois de adulto. Bobagem! Além de diversos estudos sérios atestando o contrário, eu sou a prova viva que refuta esta asneira. Comecei a estudar inglês aos 21 anos e aos 25 já ensinava. Não por ser um gênio, mas por me dedicar com afinco.

Estudei na Cultura Inglesa e tornei-me professor de lá em 1999, após ter feito o TTC (Teachers Training Course) com Jackie Sabback que, além de ter sido a minha primeira mestra, foi quem acreditou no meu potencial. Jamais esquecerei as palavras dela ao me comunicar que a escola tinha interesse de que eu fizesse parte do corpo docente. Disse: “Lubis, alguns se esforçam para dar aula. Você já nasceu professor. Isso é uma grande responsabilidade. Abrace essa carreira e aproveite!”

Neste 10 anos de casa, muitos professores chegaram, tantos outros foram e, no geral, conseguimos manter um bom clima de trabalho. Obviamente, há os atritos típicos de um ambiente em que 90% dos indivíduos ciclam e sofrem de TPM. Mas nada que distoe do normal.

Vez ou outra, surgia um professor chato de galocha, mas que, para a nossa sorte, não durava muito. Lembro de um idiota antitabagista de carteirinha. Odeio esta patrulha panfletária! Se tem uma coisa que me tira do sério (e há incontáveis) é gente que vive importunando a paz dos outros com sua idéias copiadas de livros de autoajuda.

Sempre fui um fumante relativamente educado, se é que isso existe. Segurava o cigarro com a mão esquerda, pois uso a direita pra cumprimentar; se fumava antes da aula, lavava bem o rosto, as mãos e ainda mascava chiclete em respeito aos alunos; jamais fumava em frente a crianças e, no trabalho, ia até o jardim para não importunar ninguém.

Um dia, ao chegar na sala dos professores, percebi que havia um recado escrito em letras garrafais numa folha A4, pendurado na porta no meu armário, dizendo: “NÃO FUME, ESTOU RESPIRANDO!” Arte de quem?

Quase enlouqueci de raiva. Como assim?! Aquele merdinha que só vestia camisa pólo por dentro da calça e não devia comer ninguém querendo me dar lição de moral. Vê se tem cabimento! Não contei dois, peguei uma folha A3 no almoxarifado, escrevi com piloto vermelho “NÃO RESPIRE, ESTOU FUMANDO!” e, com cola cascolar – aquela bem gosmenta que dá um trabalho retado para ser removida – afixei meu singelo cartaz na “mochila fashion que acabei de comprar em SP” do fedelho.

PUTAQUEPARIU, mermão! Se não quer fumar, ótimo. Mas, por favor, deixe eu me matar à vontade! Que fumar é nocivo à saúde, todo fumante está careca de saber. Os não-fumantes é que não entendem o quanto fumar é gostoso.

“Come to where the flavor is. Come to Marlboro country” é o lema do cigarro mais famoso produzido pela antiga Phillip Morris, fabricante londrina que criou, em 1902, sua primeira subsidiária em Nova Iorque para vender suas marcas, entre elas, Marlboro.

Nunca fumei compulsivamente mas fui fiel a este cigarro forte e encorpado de filtro amarelo por 16 anos. Era daqueles que fumam aproveitando o instante, quase como um ritual. Só quem fuma assim consegue dimensionar o que representa um trago no meio da noite quando a solidão bate à porta. Um cigarro bem fumado pode ser uma excelente companhia.

Mesmo mantendo uma média de quatro a cinco cigarros por dia, largar o vício foi uma tarefa árdua. Se por um lado tenho um paladar mais apurado agora, por outro, ganhei 15 quilos! Tenho ganas de voltar. Repito, diariamente, que não sou ex-fumante, mas sim um fumante que não fuma. É somente uma estratégia para evitar deslizes. Por experiência própria, sei que um tragozinho de nada é o suficiente para jogar todo meu esforço no lixo.

O fato é: fumar é bom pra caralho. Por isso, sucumbir à tentação da nicotina também não é o fim do mundo. Afinal, parar de fumar é fácil, basta apagar o cigarro. Foda mesmo é não voltar! Conheço, a propósito, várias pessoas que voltam para o tabaco depois de já, aparentemente, estarem lidando bem com a maldita abstinência.

Com uma querida amiga míope foi assim. Abandonamos o cigarro, coincidentemente, na mesma época. Poucos meses depois, entretanto, me surpreendi ao vê-la acendendo um mata-cachorro qualquer! Senti-me traído!

Há de se fazer justiça, porém. O motivo da recaída foi, indubitavelmente, o mais legítimo de todos no mundo mundial! Veja se você não concorda comigo.

– Porra, babes, não acredito! Achei que estivéssemos no mesmo barco! Puta que pariu! Como assim, você voltou a fumar? Como assim?!
(Na moral, ex-fumante só perde em chatice para ex-mulher!)
– Foi mais forte que eu e...
– Não me venha com desculpa esfarrapada do tipo “ai, mainha, meu pé ta doendo, meu pé ta doendo!”
– Queria ver se você estivesse no meu lugar, se não voltava a fumar também.
– Nêga, só queria te lembrar que minha namorada fuma. Eu passo por provações todo santo dia! Nada pode ser pior que isso!
– É mesmo? Então se ligue: eu tava trabalhando como produtora de um filme. Meu chefe andava a mil por hora à base de café e cigarro. E eu, na minha, segurando a onda. Não houve um dia sequer que tenha trabalhado por menos de 10 horas. Já tava um caco... nas últimas mesmo. Foi quando num domingo de manhã cedo, tipo umas 7 horas, após ter ido dormir às quatro da matina, meu celular tocou e adivinhe quem era? Meu amado chefinho. Ninguém merece o chefe ligando no único dia de folga! Ainda sonolenta, coloquei os óculos para escutar melhor e tive que ouvir o seguinte: “desculpe, querida, talvez seja um pouco cedo, mas mudei alguns planos da filmagem e preciso que você me consiga, para hoje antes do meio dia, um anão”.
– Como assim, um anão, amiga?! Como assim?!
– Pois é. Daí acendi um cigarro!

Este texto foi revisado por Paula Berbert

CINZA


Somente a brancura da tua pele
ilumina este domingo chuvoso
com gosto de sorriso melancólico...

I SEE DEAD PEOPLE

Morar na Alemanha é coisa para profissional. Amador não entra. Minha amiga Cris, já muito bem adaptada, tanto à língua quanto ao modus vivendi, que o diga. Suou a camisa até conseguir o equilíbrio entre a baianidade nagô e a germanice de Bremen. Houve um elemento fundamental para o encaixe de duas culturas tão distintas, entretanto: Das Bier!

Tive menos sorte, não bebo. Hoje me arrependo profundamente de ter me privado de aprender alemão. Foi a minha maneira de resistir a uma suposta imposição cultural etnocêntrica. Mesmo tendo vivido por quase um ano e meio naquele iceberg germânico, compreendo quase nada e consigo apenas construir frases muito rupestres. Uma pena, uma pena.

Meu primeiro professor foi Michal (pronucia-se mirrau), amigo polaco, criado primeiramente em Berlim assim que chegou da terra natal como imigrante e, então, mudou-se para Bremen, onde ainda reside e é casado com Cris. Para falar a verdade, eu os apresentei em meados de 1999, aqui em Salvador. Em função dos imponderáveis rumos que a vida toma, assim que cheguei à cidade dos Saltimbancos (Die Bremer Stadtmusikanten), Michal foi o primeiro a me dar guarida. Jamais esquecerei a minha chegada, naquela noite, à Hauptbahnof, estação central de trem. Estava emocionalmente estraçalhado, com saudade de casa e ainda era inverno. Só quem já vivenciou um inverno de verdade sabe como esse senhor gélido influencia o nosso estado de espírito.

Por ter pouquíssimos euros, peguei o trem lento, por isso mais barato... ou seria o mais barato, por isso mais lento? Após quase sete horas de viagem, ao saltar na plataforma, com a mochila pesada nas costas, logo avistei Renezão, amigo de tantas batalhas que também, por outros motivos, andava perdido nazoropa. Logo em seguida, Michal apareceu e os dois me abraçaram forte. Enquanto eu chorava convulsivamente, o futuro marido de Cris disse: “meu irmão, você acabou de chegar em casa”. Ainda me emociono com essa imagem.

Lamento tanto tê-lo decepcionado como aluno. Mesmo tendo uma excelente gramática presenteada por meu engajado professor, o aprendiz era relapso. Ele acabou, por seus justos motivos, desistindo de mim. Prematuramente talvez, mas compreendo o quanto é chato acumular as funções de mestre e babá. Acho que jamais o agradeci por ter me ensinado as três coisas mais importantes durante a minha estada por aquelas bandas:

1. Torcer pelo Werder Bremen;
2. Dizer o meu endereço (Neustadtcontrescarpe neunundzwantig);
3. A frase Bombril: Ich bin total bekift, que significa: eu tô chapadão.

Caso viaje para algum país falante de alemão, esta frase, exceto quando abordado/a por policiais, pode te livrar de muitas situações. Se te perguntam as horas, reponda Ich bin total bekift, que com certeza a pessoa procurará outrem com um relógio no pulso. Se te pedem informação a respeito de onde fica a Mc Donald’s, olhe ao redor para ver se há o tradicional M por perto. Caso esteja à vista, aponte. Se não, Ich bin total bekift nele! Questionam o seu nome, Ich bin total bekift. De onde você é? Ich bin total bekift, mais uma vez. Se bem que, nesse caso, pode-se inferir equivocadamente que você é oriundo da Jamaica ou Holanda.

Depois de quase dois meses abusando da boa vontade de Michal, meu anfitrião, a hora de buscar um lugar para mim já tinha chegado há décadas. Meu desconfiômetro já tinha ultrapassado o limite, apesar de me sentir muito à vontade no cubículo que chamávamos de lar. Comecei, então, a procura por moradia.

A primeira que visitei era uma casa de dois andares a duas estações de onde morávamos. Tive a sorte de o proprietário ser um jovem estudante, fluente em inglês, que iria passar uma longa temporada na Argentina estudando tango. Como assim, meu nêgo?! Perdeu o quê na Argentina? Como assim, Argentina?!Enlouqueceu? Lá tá entupido de argentinos...

A casa era bem no meio de uma estreita ruela transversal à avenida principal, onde de um lado havia essa série de 18 casas conjugadas e do outro, um muro de aproximadamente três metros de altura, que se estendia por todo o quarteirão. A calçada entre a porta da entrada das casas e a muralha tinha, com certeza, menos de três metros de largura. Meio claustrofóbico. Imaginei que deveria ser macabro durante a noite, pois consegui ver, após um breve rastreamento, somente um poste de iluminação pública no finalzinho da rua, lá na casa da porra.

Matze me mostrou a sala de estar, a cozinha e um micro jardim-de-inverno no térreo. No andar de cima, havia um gabinete pequeno, mas confortável, e a suíte com uma varanda surpreendentemente ampla. Foi da varanda que avistei o que estava por trás do muro. O proprietário não parava de explicar alguma coisa que eu já não escutava mais, pois estava vidrado naquilo entre o horizonte e as portas de vidro da varanda. Quando dei por mim, Matze já me pegava pelo braço como se quisesse me tirar de um transe.

(ativar tecla SAP)

- Sr. Lubisco, está tudo bem?
- Hã? Sim, sim, está. Desculpe, estava absorto.
- Aconteceu algo, posso ajudá-lo?
- Não, não. Tá tudo ótimo. Erm... me responda uma coisa. O que é isso aí na frente?
- Um muro.
- Eu quis dizer, atrás do muro.
- Ah! Acho que me esqueci de mencionar, né? É um cemitério. Algum problema com isso?
- Não exatamente...
- Ótimo. Como ia dizendo, tenho certeza que o senhor vai adorar. A vizinhança é ótima. São super silenciosos e nunca reclamam do barulho.


Este texto foi revisado por Paula Berbert

QUERÊNCIA

Nasci em uma casa de telhavã,
portas entreabertas
e cheiro de alfazema
entrando pela veneziana.


Quando me visitares
- não interessa em que cidade,
estado ou país -
pela janela do meu quarto
sempre entrará o mesmo perfume
que embalava os meus
sonhos infantis...

NA JANELA AO LADO

Depois de assistir a um micro festival de rock aqui em Salvador, resolvi escrever sobre a performance pífia de uma das bandas. Comecei a minha crítica fazendo mea culpa, ao afirmar que sou um velho ranzinza. Gostaria de reiterar: eu sou ranzinza para caralho! Insuportavelmente ranzinza!

Entre as zilhões de coisas que me irritam, o senso comum aparece nas primeiras posições. Mais especificamente, a incapacidade de reflexão diante dos fatos e a mera reprodução de um discurso massificado. É importante distinguir um do outro, pois muitas vezes, após refletirmos, o nosso posicionamento coincide com o senso comum. Aí, já era. Não faz sentido também se tornar um rebelde sem causa, não é?

É de dar calafrio no espinhaço quando me deparo com pessoas que acreditam que Jorge Vercilo é MPB, Capital Inicial é Rock, a VEJA é séria e Diogo Mainardi, legitimador de verdades absolutas. No geral, são os mesmos que vivem me enchendo o saco com argumentos esfarrapados e sem consistência. E muitos ainda se acham revolucionários, messiânicos, quando são, na verdade, papagaios do mainstream às avessas.

Ainda recordo quando surgiu para o grande público, em 1993, a banda Planet Hemp, liderada por Marcelo D2, com o mega hit Legalize Já (Rafael / Marcelo D2). O refrão simboliza, para mim, a síntese da argumentação vazia e, por isso, tira esse velho ranzinza do sério. Diz assim:

Legalize já, legalize já
Porque uma erva natural não pode te prejudicar.

Como assim, não pode te prejudicar? Como assim?! Vá cagar no mato e se limpar com cansanção para ver se uma erva natural não te prejudica. Com certeza, vai deixar a bunda queimadinha e cheia de bolhas em função dos seus efeitos urticantes e vesiculantes.

Sinto minha pouca inteligência subestimada à enésima potência! É superficial demais. Chega a ser primário. Completamente compreensível se encontrado numa redação de aluno secundarista - repetente. Mas num texto de um adulto? Pelamordedeus!

Não desconheço os valores terapêuticos do THC (delta-9-tetrahidrocannabinol), a substância ativa da maconha. Na luta contra o mal de Alzheimer, por exemplo. Os pesquisadores do Instituto Scripps de Pesquisa, na Califórnia, concluíram que o THC pode ser mais eficaz na preservação do neurotransmissor acetilcolina do que medicamentos vendidos regularmente. Ou ainda para reduzir a pressão intra-ocular em pacientes com Glaucoma. Sei disso tudo.

Um amigo meu acredita de pé junto nos poderes milagrosos da ganja para curar gagueira!

Certa feita, houve um encontro aqui em casa para se tocar violão, comer petiscos e, principalmente, jogar conversa fora. Lá pelas tantas, quase todos nós a umas duas doses acima do normal, Zé (nome fictício para preservar a identidade do maconheiro) me consultou a respeito da possibilidade de “queimar unzinho”. Ponderei que não seria legal, pois minha irmã, com quem dividia o apartamento, não lidava bem com isso e já estava dormindo no quarto, cuja janela era semi-conjugada com a varanda da sala, onde estávamos. Sem se dar por rogado, contra argumentou:

- Man, a ma-ma-maconha curou minha ga-ga-ga-gagueira! Na na na mo-mo-moral, é te-te-terapêutico!

H.E.L.P.

Chegaram a cogitar que minha alcunha fosse uma homenagem aos meus dois avôs. Felizmente, meu pai percebeu que, além de “Humberto Eduardo” soar como protagonista de novela mexicana, o acrônimo do meu nome completo – Humberto Eduardo Lubisco Portella – seria HELP. Acabei sendo batizado só em tributo ao pai de meu pai, o já falecido Vovô Eduardo.

Meu Vô Humberto era um homem forte e muito elegante. Oftalmologista, operou até os 65 anos e nunca parou de clinicar. Morreu em Porto Alegre, onde nascera e vivera toda a sua vida, aos 76 anos, em 1º de janeiro de 1989. Eu tinha apenas 14 anos e sofri. Sofri por ver minha mãe chorar e por não ter convivido o suficiente com aquele homem de poucas palavras, mas de muito afeto. Divertia-se com a ingenuidade infantil dos netos. Lembro que quando Nana, minha irmã mais velha, estava sendo alfabetizada, ele implicava com o nome da Professora dela: Pró Glades (pronuncia-se “Gleides”).

Meu Vô – Qual o nome de sua professora mesmo?
Nana (debruçada sobre o dever de casa) – “Gleides”.
Meu Vô – Não, é Glades.
Nana (já irritada) - Não é nada. É “Glei-des”!
Meu Vô (quase zen budista) - Nada disso. Está escrito aqui, ó: Gla-des!
Nana (aos berros) – “Glei-des”, meu Vô! “Glei-des”!
Meu Vô (em estado de pré-levitação) – Gla-des, minha neta. Gla-des!

Certa feita, estávamos indo a Villas do Atlântico no Fusca cinza de D. Nídia Lubisco, placa AZ-5877. Minha mãe dirigia, Minha Vó ia ao lado dela e, no banco de trás, eu, Nana, Kika – a caçula – e ele, Dr. Humberto, nos espremíamos. Eu, que estava bem atrás da motorista, tive que sentar meio de banda, com um pedaço da bunda apoiado na lateral do carro. Depois de alguns poucos minutos de estrada, reclamei:

Eu – Pô, mãe! Tô sentado com a bunda pra cima!
Meu Vô (com sotaque de gaúcho) – Então estás de cabeça para baixo, Guri.

E gargalhou alto. Essa foi, com certeza, a única vez que o vi gargalhar sem se conter...

Não recordo direito se foi no mesmo dia que, ao ouvir alguém chamar um senhor de velho, retrucou baixinho para si próprio: “velho é o mundo”. Confesso que na época, provavelmente em função da pouca idade, não tinha alcançado a profundidade de tão sábias palavras. Para mim, minha mãe era velha, meu pai era velho, o jardineiro da casa era velho, Olga, a babá de Kika, também era velha. Como assim, velho é o mundo?! Como assim?! Porém nada melhor que o tempo para dar significado ao que aparenta ser, em algum momento da vida, nonsense.

Eu já estava praticando boxe há aproximadamente quatro meses, já tinha perdido alguns quilos, recuperado um pouco do fôlego perdido para o cigarro e, aos 34 anos, me sentia um atleta! Numa quarta-feira, substituí um colega no trabalho e acabei não chegando ao treinamento a tempo. Corri para casa, vesti a bermuda, a velha camiseta com mangas cortadas, calcei meu All Star preto de cano alto, peguei minha corda, o som portátil de Kika e desci de escada para o playground saltando os degraus de dois em dois, só para aquecer. Chegando lá embaixo, coloquei o álbum Mutter, da banda alemã Rammstein, para tocar no máximo e, me sentido Rocky Balboa, comecei a pular corda. Não sou exatamente um especialista, mas, literalmente, dou meus pulos.

Já estava na função há pelo menos vinte minutos quando apareceu um garoto na faixa etária de uns 13 anos. Pouco depois, chegou seu comparsa aparentando a mesma idade e trazendo uma bola de futebol. Imagino que eu estava tomando o lugar designado por eles para jogar um golzinho, apesar do regimento interno do condomínio proibir terminantemente qualquer jogo com bola nas áreas comuns.

Ficaram ali, quietos, quase hipnotizados me observando saltitar freneticamente ao som de “Nun liebe Kinder gebt fein Acht / ich bin die Stimme aus dem Kissen / ich singe bis der Tag erwacht / ein heller Schein am Firmament / Mein Herz brennt” , que podia ser ouvido num raio de 15km. E eu, vendo aquela cena de canto de olho, me envaideci. “Devem estar impressionados com a minha velocidade. Tô abafando!”, pensei.

Sabe quando você está numa boate com o som ensurdecedor, berrando no ouvido do seu bróder algo sobre a gostosa de minissaia e camiseta transparente dançando bem à sua frente, daí a música pára de vez e todo mundo ouve o seu “GOSTOOOOOOSA AÍ DA FRENTE!”? Sabe? Pois foi o que aconteceu

Assim que Till Lidemann, vocalista do Rammstein, abruptamente parou de vociferar nos alto-falantes do portátil de minha irmã caçula, ouvi os garotos arremessarem o seguinte petardo sem piedade alguma, bem direto na caixa do peito:

Moleque-Que-Merece-Uma-Surra-de-Cansanção-1 – “Porra! Ó pro coroa! Botando pra fudê!”
Moleque-Que-Merece-Uma-Surra-de-Cansanção-2 – “O coroa tá em cima! Arregaçando!”.

Como era sábio Meu Vô Humberto.
Este texto foi revisado por Paula Berbert

MUITA ESTRELA PARA POUCA CONSTELAÇÃO

Segundo a Sociedade Internacional de Cefaléia, 78% da população mundial é acometida por este mal, comumente conhecido como dor de cabeça. Por azar, não faço parte dos felizes 22%. Ainda sofro com enxaquecas. Porém nada comparado a um passado quase recente que me proporcionou fazer um tour pelo atendimento de diversas salas de emergência em Salvador.

Já cheguei ao ponto de, no auge da crise, ingerir quatro comprimidos de Tylenol 750 mg. Loucura total. Absurdo! Só quem sofre com migrâneas pode dimensionar o desespero que é aguardar o remédio dar fim a este tormento.

Lembro quando ainda cursava Musicoterapia na Universidade Católica de Salvador e, na segunda semana do terceiro semestre letivo, no final da primeira aula, às 14:40, no Instituto de Música na Av. Carlos Gomes, eu estava prestes a sair correndo até a primeira farmácia com o único objetivo de comprar um medicamento específico para curar-me daquela maldita mazela, quando Michal, uma colega já mais madura e pra lá de esotérica, me pegou pelo braço:

Michal - Lubisco, o que aconteceu? Você tá com uma cara péssima, menino!
Eu (tentando me desvencilhar) - Minha cabeça tá estourando. Tô indo aqui na farmácia comprar um remédio. Não aguento mais!
Michal - Lubisco, Lubisco... Essa coisa de se intoxicar com essa química toda somente macula sua aura e atrapalha seu karma. Tome um chazinho que é natural.

Porra de chá! Eu quero é droga pesada pra acabar com esse martírio, pensei. Respirei fundo, educadamente agradeci, voei até o paraíso dos hipocondríacos, comprei o medicamento e um copo de água mineral, ingeri duas cápsulas de Cefalium, voltei para o pavilhão de aulas, deitei no banco de madeira do corredor e, com o caderno a guisa de veneziana, adormeci.

Acordei após o final das aulas do período com um sucesso do carnaval baiano do início dos anos 90 na cabeça, cujos autor e intérprete me fogem à memória e nem o Mr. Google sabe: “O índio me deu um remédio pra dor de cabeça / mas o remédio do índio fez a minha cabeça. / Foi chá, menina foi chá / menina, foi chá / menina, foi chá...”

A indústria do carnaval soteropolitano mercantilizou a música local, de forma que bandas e artistas que vivem do axé music se esmeram para lançar um sucesso por verão. São canções descartáveis, esquecidas nos meses que seguem a celebração momesca.

Atualmente, no carnaval de Salvador, há não apenas hits de verão, mas também bandas sazonais com vida útil curtíssima. A lógica é triste. No geral, meia dúzia de empresários da indústria de entretenimento local lançam “o maior talento de todos os tempos que vai dominar a axé music pelas próximas décadas”. Quem será que leva o dinheiro nessa história?Quem? Quem?

A estratégia é de começar com uma banda. Daí, o/a vocalista tem a sua imagem exaustivamente divulgada pela imprensa e, com a influência correta e um pouquinho de sorte, consegue um prêmio qualquer de artista revelação. O resto da banda pouco importa! Quer ver?

Quem era a guitarrista da banda As Meninas? E a vocalista?
Quem tocava teclado na Rapazzola? E quem cantava?
Qual o nome do percussionista da Banda Beijo? E dos dois vocalistas que passaram por lá?

Acredito que o fato de não me interessar, em absoluto, pelos bastidores do carnaval, contribua para conseguir lembrar os vocalistas, apenas: As Meninas, Carla Cristina; Rapazzola, Tomate; e Beijo, Netinho e Gilmelândia. Entretanto, mesmo o mais ávido consumidor de música carnavalesca contemporânea deve ter dificuldade de acompanhar a ascensão e queda de tantas estrelas numa mesma constelação. E em Salvador, ignorar astronomia pode ser deveras perigoso...

Uma semana antes de abandonar minhas aulas de boxe, já não aguentava mais pagode e axé music tocando durante os 60 minutos de treino. Como assim treinar boxe ouvindo Guig Gheto, Bel Marques e Durval Lélis? Como assim, mermão?! Só se a intenção é instigar o cara pra sair na pipoca do Chiclete, em plena Praça Castro Alves, rumandoladisgraça em quem passar pela frente. Aí sim, tudo faz sentido!

Assim que entrei na sala, percebi que não reconhecia o som que vinha dos alto-falantes. Certamente era axé, mas nenhuma voz conhecida. Enquanto alongava, ouvi aquilo atentamente e notei que uma voz masculina, parecida com a de Tatau (ex-Araketu), e uma feminina, parecida com a de Ivete Sangalo (ex-Eva) ou a de Claudia Leite (ex-Babado Novo) – como preferir –, se revezavam. Antes fosse meia voz, pois as duas juntas eram uma ode à bizarrice. Juro que prefiro minha irmã ouvindo Roupa Nova com headphone e cantando aos berros por não se ouvir. E posso garantir que isso não soa nada legal!

Lá pelas tantas, quando a tortura auditiva já extrapolara todos os princípios de direitos humanos, fui até o professor, Dói, e perguntei:

Eu - Dói, que porra é essa, man?!
Dói - Oxe, Lubisco. Colé? Curta aí, vá, relaxe!!
Eu - Velho, na moral, eu prefiro um dueto com Bel e Durval cantando. Isso é ruim demais! Qual o nome dessa coisa?
Dói - Uma banda nova. VOA DOIS. Vai dizer que você não gosta?

Por uma triste infelicidade do destino, naquele exato instante, a vocalista da referida banda adentrou a sala e se prostrou logo atrás desse que aqui escreve, para sua primeira aula. Eu continuei...

- Dói, veja bem. Se eu não tivesse nenhum outro motivo no mundo pra não gostar dessa tal VOA DOIS, seria simplesmente por que eles não foram capazes de fazer uma mera concordância verbal. VOA DOIS... VOA DOIS... Como assim, VOA DOIS?! Humpf!



Ps.: Para que o leitor desgoste de coisas apenas por motivos que não estejam relacionados à língua e não cometa o crime que cometi, sugiro a leitura de O PRECONCEITO LINGUÍSTICO, editora Loyola, de Marco Bagno.

Este texto foi revisado por Paula Berbert

NOSTRADAMUS


Quem diria? Esse post foi originalmente publicado em 07 de janeiro de 2008 no meu fotolog (www.fotolog.com/lubisco). A sequência, para facilitar a compreensão dos desavisados, é a seguinte:

1.Texto meu
2. Réplica de D. Paula
3. Tréplica minha.

Era sexta-feira à noite, nada interessante pra fazer,
Talvez assistir Globo Repórter Especial na TV.
Dei (lá ele) uma olhada no jornal atrás de novidade,
Algo de novo acontecendo pela cidade.
Mas a impressão é que nada acontecia
Justamente em Salvador, a cidade da magia.
Ok, exagero meu. Se quisesse na jaca meter o pé,
Podia pagar pra ver o show do Parangolé.
Shows desse tipo, entretanto, não vou amiúde
Pois acredito que fazem muito mal a saúde.
Permaneci pensando, então -eterna labuta-
Quase sucumbindo a um tédio filho da ....
Estava disposto a pegar a moto, até ir tomar um vinho
Só pra não ficar em casa me deprimindo sozinho.
Foi quando tocou o telefone e era o meu amigo Xandão
Convidando-me pra aparecer no Balcão.
Justamente onde tinha passado meu reveillon,
A BANDA DE ROCK estaria fazendo um som!
Saltei da poltrona, não contei conversa
E me arrumei em poucos minutos com muita pressa
Pois, incrivelmente, no momento atual
Ainda existe um banda relativamente pontual,
E também eu já estava certo que o meu dia
Necessitava ao menos uma boa melodia
Para que eu fosse, finalmente, dormir em paz
Pois axé, pagode e arrocha eu não aguento mais.
Na mesma mesa: Renaty, Nanda e Xandão...
Uma overdose de amigos pra esse velho coração!
Eu estava emocionado, bobo que sou,
Com as pessoas que amo além do bom e velho rock n roll!
E naquela noite, ainda sentado à mesa
Fiquei feliz com a grata surpresa
De que a melhor banda de rock do mundo (há quem jure!!!)
Teria o retorno de Ricardo Cury.
Foi quando vi chegar, entre todas, a maior Casacadurete:
Ninguém mais ninguém menos que Paula Berbert!
Educadamente falou com todos e sentou ao nosso lado
Chamou o garçom e pediu logo um destilado!
Um drink aqui, outro acolá
E eu pensando: quero ver onde isso vai dar!
De repente, levantou-se como se fosse sair
Mas que nada! Sem qualquer medo de cair
Num rompante, sem eira nem beira,
Suspendeu o vestido e pulou pra cima da cadeira!
Alheia aos amigos que permaneciam se preocupando,
Paula, com passinhos seguros e leves seguia dançando.
Dois rapazes espertos, nada trouxas,
Ficaram boquiabertos com o par de coxas
Aparecendo por baixo daquele vestido
Que com uns 50cm a mais tornar-se-ia apenas semi-comprido!
O mais interessado te todos no ocorrido, entretanto,
Estava ali, sentadinho ao lado, bem no canto
Aproveitando, de forma sucinta e apropriada o grato ensejo
Para expressar, em nome de todos os homens, por Paulinha, desejo!
Vocês, leitores, não acham que diante da deusa, nosso querido Xandão
Mais se assemelha com um fofíssimo cachorro pidão!?

RÉPLICA

Era sexta-feira à noite, eu do outro lado da cidade
Doida para ir ao Rio Vermelho matar a saudade
Minha Primoca estaria lá com os amigos
Entre eles o cara que “eu já gosto”, o tal do Lubisco
Cheguei feliz e contente e me aproximei
E uma singela dose de vodka eu solicitei
Uma apenas, umazinha só
Só para aquecer e a festa ficar melhor
E no impulso natural que no meu sangue corre
Levantei-me para dançar – nada a ver com porre!
Querendo manter a honra e a tradição
Subi na cadeira, com meu copo na mão
Apenas uma cena ingênua, como podem notar
Passinhos de danças, risos e poses pra fotografar
O vestido era curto, mas nem era esse exagero!
Estava tudo bem coberto, nao me deixe em desespero
O bom comportamento reinou com maestria
Nada que não fosse simples expressão de alegria!
Xandão, bom ator, criou a cena ao meu lado
Para virar foto engraçadinha, tudo bem montado.
Agora abro a internet e me deparo com a surpresa
Depois da gargalhada, retribuo a gentileza
Cheguei a pensar se me sentia homenageada,
Se morria de vergonha ou se ficava aqui chocada
Mas, na real, caretice não é comigo não
E eu vejo tudo isso com enorme emoção!
Agora que consegui parar de chorar de rir
Venho cheia de orgulho registrar aqui:
Eu sou mesmo uma pessoa muito privilegiada
Por ter ao meu redor tanta gente inspirada
Obrigada pela homenagem, Lubisco e Primoca queridos
Obrigada tambem a Xandão, assistente preferido
Me despeço feliz e emocionada, me sentindo A famosa
Na torcida de que venham muito mais noites deliciosas!

TRÉPLICA

Ora, ora quem diria!
Disso realmente não sabia!
Além da perna atlética
Paula tem uma veia poética!
Mostrou-se muito hábil
Com rima fluida, divertida e ágil.
Porém, tão ruim como sentir fome
É conseguir rima para o meu nome.
Humildemente, Paulinha, estendo a mão
E deixo aqui uma pequena lição:

Não fazia sol, caía um leve chuvisco.
E um amigo meu, que rompera o menisco
Ficava em casa fazendo rabisco
Vendo televisão e comento petisco.
De comer tudo e tanto, menos marisco
- Sempre refogado com tempero Arisco -
Ficou grande como um obelisco.

Brincadeiras à parte,
Aproveitemos esse pé na arte!
Que se divulgue no ATARDE, ISTOÉ e VEJA
O nascimento de uma dupla nada sertaneja
Pronta pra, sem modéstia alguma, dar aula.
Abram alas, Senhoras e senhores, a Lubisco & Paula.