MUITA ESTRELA PARA POUCA CONSTELAÇÃO

Segundo a Sociedade Internacional de Cefaléia, 78% da população mundial é acometida por este mal, comumente conhecido como dor de cabeça. Por azar, não faço parte dos felizes 22%. Ainda sofro com enxaquecas. Porém nada comparado a um passado quase recente que me proporcionou fazer um tour pelo atendimento de diversas salas de emergência em Salvador.

Já cheguei ao ponto de, no auge da crise, ingerir quatro comprimidos de Tylenol 750 mg. Loucura total. Absurdo! Só quem sofre com migrâneas pode dimensionar o desespero que é aguardar o remédio dar fim a este tormento.

Lembro quando ainda cursava Musicoterapia na Universidade Católica de Salvador e, na segunda semana do terceiro semestre letivo, no final da primeira aula, às 14:40, no Instituto de Música na Av. Carlos Gomes, eu estava prestes a sair correndo até a primeira farmácia com o único objetivo de comprar um medicamento específico para curar-me daquela maldita mazela, quando Michal, uma colega já mais madura e pra lá de esotérica, me pegou pelo braço:

Michal - Lubisco, o que aconteceu? Você tá com uma cara péssima, menino!
Eu (tentando me desvencilhar) - Minha cabeça tá estourando. Tô indo aqui na farmácia comprar um remédio. Não aguento mais!
Michal - Lubisco, Lubisco... Essa coisa de se intoxicar com essa química toda somente macula sua aura e atrapalha seu karma. Tome um chazinho que é natural.

Porra de chá! Eu quero é droga pesada pra acabar com esse martírio, pensei. Respirei fundo, educadamente agradeci, voei até o paraíso dos hipocondríacos, comprei o medicamento e um copo de água mineral, ingeri duas cápsulas de Cefalium, voltei para o pavilhão de aulas, deitei no banco de madeira do corredor e, com o caderno a guisa de veneziana, adormeci.

Acordei após o final das aulas do período com um sucesso do carnaval baiano do início dos anos 90 na cabeça, cujos autor e intérprete me fogem à memória e nem o Mr. Google sabe: “O índio me deu um remédio pra dor de cabeça / mas o remédio do índio fez a minha cabeça. / Foi chá, menina foi chá / menina, foi chá / menina, foi chá...”

A indústria do carnaval soteropolitano mercantilizou a música local, de forma que bandas e artistas que vivem do axé music se esmeram para lançar um sucesso por verão. São canções descartáveis, esquecidas nos meses que seguem a celebração momesca.

Atualmente, no carnaval de Salvador, há não apenas hits de verão, mas também bandas sazonais com vida útil curtíssima. A lógica é triste. No geral, meia dúzia de empresários da indústria de entretenimento local lançam “o maior talento de todos os tempos que vai dominar a axé music pelas próximas décadas”. Quem será que leva o dinheiro nessa história?Quem? Quem?

A estratégia é de começar com uma banda. Daí, o/a vocalista tem a sua imagem exaustivamente divulgada pela imprensa e, com a influência correta e um pouquinho de sorte, consegue um prêmio qualquer de artista revelação. O resto da banda pouco importa! Quer ver?

Quem era a guitarrista da banda As Meninas? E a vocalista?
Quem tocava teclado na Rapazzola? E quem cantava?
Qual o nome do percussionista da Banda Beijo? E dos dois vocalistas que passaram por lá?

Acredito que o fato de não me interessar, em absoluto, pelos bastidores do carnaval, contribua para conseguir lembrar os vocalistas, apenas: As Meninas, Carla Cristina; Rapazzola, Tomate; e Beijo, Netinho e Gilmelândia. Entretanto, mesmo o mais ávido consumidor de música carnavalesca contemporânea deve ter dificuldade de acompanhar a ascensão e queda de tantas estrelas numa mesma constelação. E em Salvador, ignorar astronomia pode ser deveras perigoso...

Uma semana antes de abandonar minhas aulas de boxe, já não aguentava mais pagode e axé music tocando durante os 60 minutos de treino. Como assim treinar boxe ouvindo Guig Gheto, Bel Marques e Durval Lélis? Como assim, mermão?! Só se a intenção é instigar o cara pra sair na pipoca do Chiclete, em plena Praça Castro Alves, rumandoladisgraça em quem passar pela frente. Aí sim, tudo faz sentido!

Assim que entrei na sala, percebi que não reconhecia o som que vinha dos alto-falantes. Certamente era axé, mas nenhuma voz conhecida. Enquanto alongava, ouvi aquilo atentamente e notei que uma voz masculina, parecida com a de Tatau (ex-Araketu), e uma feminina, parecida com a de Ivete Sangalo (ex-Eva) ou a de Claudia Leite (ex-Babado Novo) – como preferir –, se revezavam. Antes fosse meia voz, pois as duas juntas eram uma ode à bizarrice. Juro que prefiro minha irmã ouvindo Roupa Nova com headphone e cantando aos berros por não se ouvir. E posso garantir que isso não soa nada legal!

Lá pelas tantas, quando a tortura auditiva já extrapolara todos os princípios de direitos humanos, fui até o professor, Dói, e perguntei:

Eu - Dói, que porra é essa, man?!
Dói - Oxe, Lubisco. Colé? Curta aí, vá, relaxe!!
Eu - Velho, na moral, eu prefiro um dueto com Bel e Durval cantando. Isso é ruim demais! Qual o nome dessa coisa?
Dói - Uma banda nova. VOA DOIS. Vai dizer que você não gosta?

Por uma triste infelicidade do destino, naquele exato instante, a vocalista da referida banda adentrou a sala e se prostrou logo atrás desse que aqui escreve, para sua primeira aula. Eu continuei...

- Dói, veja bem. Se eu não tivesse nenhum outro motivo no mundo pra não gostar dessa tal VOA DOIS, seria simplesmente por que eles não foram capazes de fazer uma mera concordância verbal. VOA DOIS... VOA DOIS... Como assim, VOA DOIS?! Humpf!



Ps.: Para que o leitor desgoste de coisas apenas por motivos que não estejam relacionados à língua e não cometa o crime que cometi, sugiro a leitura de O PRECONCEITO LINGUÍSTICO, editora Loyola, de Marco Bagno.

Este texto foi revisado por Paula Berbert

7 Response to "MUITA ESTRELA PARA POUCA CONSTELAÇÃO"

  1. Anônimo Says:

    pois é, se eu gostasse de axé até ficaria triste com a meteórica carreira dessas bandas rídiculas que aparecem todos os anos. o pior é que tem gente que gosta!!
    pensei que a música do chá fosse de gerônimo, mas o google não mostra, hehehe

    qto a um dos cantores da banda beijo, chamavasse Ilo Gomes, que também não aparece como cantor da banda segundo o google, mas só como compositor de algumas músicas de axé. carreira meteórica devido a tumor que o fez perder voz e audição.

  2. Anônimo Says:

    errata 1: chamava-se!
    errata 2: chama-se ainda. O rapaz é um exemplo de força e superação.

  3. Malabarista de Palavras Says:

    O 1º texto que li do Marcos Bagno, foi em Let001, do livro Lingüística da Norma. na época, achei super complicado, e de certa forma, ele "completava" um outro texto que falava sobre a linguagem e o seu poder de discriminação. já no semestre passado, uma professora indicou "Preconceito Lingüístico", achei bárbaro.
    * tem um livro muito bom, chamado "A cor da língua e outras croniquinhas de linguística", do Sírio Possenti.


    A enxaqueca é um mal que tb me aflinge, e graças aos desmaios acometidos por ela, no ano passado torci o tornozelo.

  4. Jessy Says:

    A tortura auditiva é um caso sério! O artigo V da Declaração dos Direitos Humanos diz:
    "Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.".

    "Há pessoas estrelas e há pessoas cometas...
    Os cometas passam. Apenas são lembrados pelas
    datas que passam e que retornam.
    As estrelas permanecem. O sol permanece. Passam
    anos, milhões de anos, e as estrelas permanecem.".

    Muitas bandas que a cada dia surgem fazem "sucesso" no começo, mas depois são logo esquecidas... são cometas...

    bjkas

  5. Alexandre Beanes Says:

    migrânea...essa entra para o rol de claviculário.
    curiosidade, a tal figura do voa dois tentou te bater ou acharam que fazer você escutar a música dela já era castigo suficiente?

  6. Anônimo Says:

    livro muito bom mesmo. No mundo da letras guardo boas lembranças de Bagno.

    Many

  7. Leonardo Araújo Says:

    A música do índio se chama "A Dança do Índio", é de Carlinhos Axé e foi gravada em 1989. :)