I SEE DEAD PEOPLE

Morar na Alemanha é coisa para profissional. Amador não entra. Minha amiga Cris, já muito bem adaptada, tanto à língua quanto ao modus vivendi, que o diga. Suou a camisa até conseguir o equilíbrio entre a baianidade nagô e a germanice de Bremen. Houve um elemento fundamental para o encaixe de duas culturas tão distintas, entretanto: Das Bier!

Tive menos sorte, não bebo. Hoje me arrependo profundamente de ter me privado de aprender alemão. Foi a minha maneira de resistir a uma suposta imposição cultural etnocêntrica. Mesmo tendo vivido por quase um ano e meio naquele iceberg germânico, compreendo quase nada e consigo apenas construir frases muito rupestres. Uma pena, uma pena.

Meu primeiro professor foi Michal (pronucia-se mirrau), amigo polaco, criado primeiramente em Berlim assim que chegou da terra natal como imigrante e, então, mudou-se para Bremen, onde ainda reside e é casado com Cris. Para falar a verdade, eu os apresentei em meados de 1999, aqui em Salvador. Em função dos imponderáveis rumos que a vida toma, assim que cheguei à cidade dos Saltimbancos (Die Bremer Stadtmusikanten), Michal foi o primeiro a me dar guarida. Jamais esquecerei a minha chegada, naquela noite, à Hauptbahnof, estação central de trem. Estava emocionalmente estraçalhado, com saudade de casa e ainda era inverno. Só quem já vivenciou um inverno de verdade sabe como esse senhor gélido influencia o nosso estado de espírito.

Por ter pouquíssimos euros, peguei o trem lento, por isso mais barato... ou seria o mais barato, por isso mais lento? Após quase sete horas de viagem, ao saltar na plataforma, com a mochila pesada nas costas, logo avistei Renezão, amigo de tantas batalhas que também, por outros motivos, andava perdido nazoropa. Logo em seguida, Michal apareceu e os dois me abraçaram forte. Enquanto eu chorava convulsivamente, o futuro marido de Cris disse: “meu irmão, você acabou de chegar em casa”. Ainda me emociono com essa imagem.

Lamento tanto tê-lo decepcionado como aluno. Mesmo tendo uma excelente gramática presenteada por meu engajado professor, o aprendiz era relapso. Ele acabou, por seus justos motivos, desistindo de mim. Prematuramente talvez, mas compreendo o quanto é chato acumular as funções de mestre e babá. Acho que jamais o agradeci por ter me ensinado as três coisas mais importantes durante a minha estada por aquelas bandas:

1. Torcer pelo Werder Bremen;
2. Dizer o meu endereço (Neustadtcontrescarpe neunundzwantig);
3. A frase Bombril: Ich bin total bekift, que significa: eu tô chapadão.

Caso viaje para algum país falante de alemão, esta frase, exceto quando abordado/a por policiais, pode te livrar de muitas situações. Se te perguntam as horas, reponda Ich bin total bekift, que com certeza a pessoa procurará outrem com um relógio no pulso. Se te pedem informação a respeito de onde fica a Mc Donald’s, olhe ao redor para ver se há o tradicional M por perto. Caso esteja à vista, aponte. Se não, Ich bin total bekift nele! Questionam o seu nome, Ich bin total bekift. De onde você é? Ich bin total bekift, mais uma vez. Se bem que, nesse caso, pode-se inferir equivocadamente que você é oriundo da Jamaica ou Holanda.

Depois de quase dois meses abusando da boa vontade de Michal, meu anfitrião, a hora de buscar um lugar para mim já tinha chegado há décadas. Meu desconfiômetro já tinha ultrapassado o limite, apesar de me sentir muito à vontade no cubículo que chamávamos de lar. Comecei, então, a procura por moradia.

A primeira que visitei era uma casa de dois andares a duas estações de onde morávamos. Tive a sorte de o proprietário ser um jovem estudante, fluente em inglês, que iria passar uma longa temporada na Argentina estudando tango. Como assim, meu nêgo?! Perdeu o quê na Argentina? Como assim, Argentina?!Enlouqueceu? Lá tá entupido de argentinos...

A casa era bem no meio de uma estreita ruela transversal à avenida principal, onde de um lado havia essa série de 18 casas conjugadas e do outro, um muro de aproximadamente três metros de altura, que se estendia por todo o quarteirão. A calçada entre a porta da entrada das casas e a muralha tinha, com certeza, menos de três metros de largura. Meio claustrofóbico. Imaginei que deveria ser macabro durante a noite, pois consegui ver, após um breve rastreamento, somente um poste de iluminação pública no finalzinho da rua, lá na casa da porra.

Matze me mostrou a sala de estar, a cozinha e um micro jardim-de-inverno no térreo. No andar de cima, havia um gabinete pequeno, mas confortável, e a suíte com uma varanda surpreendentemente ampla. Foi da varanda que avistei o que estava por trás do muro. O proprietário não parava de explicar alguma coisa que eu já não escutava mais, pois estava vidrado naquilo entre o horizonte e as portas de vidro da varanda. Quando dei por mim, Matze já me pegava pelo braço como se quisesse me tirar de um transe.

(ativar tecla SAP)

- Sr. Lubisco, está tudo bem?
- Hã? Sim, sim, está. Desculpe, estava absorto.
- Aconteceu algo, posso ajudá-lo?
- Não, não. Tá tudo ótimo. Erm... me responda uma coisa. O que é isso aí na frente?
- Um muro.
- Eu quis dizer, atrás do muro.
- Ah! Acho que me esqueci de mencionar, né? É um cemitério. Algum problema com isso?
- Não exatamente...
- Ótimo. Como ia dizendo, tenho certeza que o senhor vai adorar. A vizinhança é ótima. São super silenciosos e nunca reclamam do barulho.


Este texto foi revisado por Paula Berbert

7 Response to "I SEE DEAD PEOPLE"

  1. Alexandre Beanes Says:

    e vc morou nesse lugar, man? moro perto de um cemitério, mas colado em um seria demais para minha cabeça...rs...eu ia viver dizendo Ich bin total bekift para alma penada...hahaha

  2. lubisco Says:

    não morei, nao! Acabei indo morar num apartamento no mesmo prédio de Michal, na Neustadstconstrescarpe.

  3. Paula Says:

    Este comentário foi removido pelo autor.
  4. Paula Says:

    1) Não consigo me imaginar falando alemão, mas consigo direitinho me ver tomando todas as cervejas da terra com Cris.

    2) Uma das coisas mais lindas do mundo é você contando esta história da estação de trem.

    3) Eu não me importaria de ter vista para o cemitério, caso a janela fosse nossa.

  5. Marcos Says:

    heheh sensacional, Lubis!

    você poderia escrever mais sobre essa época na alemanha. Parece ter sido uma experiência meio surreal-trash, mas interessante.

    Estou sempre por aqui.
    Beijos

  6. Cris O Says:

    Amigo,

    Adorei seu texto. Leio o amor que vc tem por a gente em cada palavra. Obrigada, viu. deixa eu ir que tá fazendo sol aqui e das Bier está me esperando:-). Beijocas

    P.S Fala pra Paula que eu tbm mal posso esperar pra tomas uma cervejas com ela. Beijao

  7. Jessy Says:

    "A vizinhança é ótima. São super silenciosos e nunca reclamam do barulho."
    Mas que barulho?! rsrsrs.... são apenas 17 casas conjugadas restantes e um cemitério!
    :)
    Ótimo texto!