Na sexta-feira passada, fui ao Póstudo – talvez o único bar realmente tradicional da capital baiana – com Paula e, por acaso, encontramos dois grandes músicos nascidos na República da Cidade Baixa: Alexandre, baterista de uma influente banda local de surf music (com grande influência do carnaval russo), e Silvano, baixista que hoje mora em São Paulo e toca com o maior expoente do rock soteropolitano, em nível nacional.

Conversamos longamente, aproveitando cada minuto daquele encontro fortuito. Discorremos sobre filhos, casamento, divórcio, pais separados, fusca, a vida na Paulicéia, rock e, para o meu deleite, sobre o depoimento de Silvano no ainda inédito DVD do Cascadura (Efeito Bogary).

Há poucos meses, me dedicara à tarefa de traduzir para inglês todos os depoimentos e trechos de música desse registro audiovisual que fecha o ciclo de quase três anos do álbum Bogary. Foram mais de dez horas ininterruptas de trabalho para vencer os 50 minutos do documentário. Tarefa árdua, mas muito prazerosa por me permitir, em primeira mão, ver os grandes nomes da minha geração fazendo história.

E ali estava Silvano, bem na minha frente. Ele, que era protagonista de um dos trechos que mais me emocionaram, bem ao meu alcance para contar os detalhes do dia da gravação, dos sentimentos, o que foi cortado pela edição, entre outras curiosidades. Ele contou. Respondeu minhas perguntas. Divertiu-se revivendo as próprias histórias e me fez rir. Ri muito mesmo!

Quando já estava se despedindo, Silvano pediu o número do meu celular:

- Me dê seu celular aí, vá.
- Quero deixar bem claro que posso até fornecer o número do celular, mas dar, jamais. Eis um verbo que não conjugo na 1ª pessoa em nenhum tempo verbal.
- Verdade. Certíssimo! Forneça aí, então, vá!
- Blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá.
- Ô, Lubisco, você tem nome?
- Lubisco já é um nome, porra!
- Entenda, velho: um nome... nome de verdade. Pra colocar na agenda.
- Eduardo. Eduardo Lubisco.
- Acho melhor Lubisco. Nunca saberei quem é Eduardo.

Nomes incomuns sempre chamaram a minha atenção, principalmente por não compreender como alguns pais, diante da recém-parida cria, eram capazes de escolher coisas tipo Ubatan.

Quando eu era aluno de Professora Helena, da 4ª série C, tive um colega batizado com esta alcunha. O coitado sofria por causa do nome, viu? Como crianças podem ser cruéis. Chamávamo-lo de Cubatão, fazendo referência à cidade paulista que, na época, era considerada a mais poluída do mundo. Além de os nomes soarem, de alguma forma, parecidos, Cubatão, ou melhor, Ubatan, não era muito chegado a banhos. Diversas vezes um odor meio estranho emanava daquela pele branco-encardida. Se tivesse cor, aquele cheiro seria cinza, igual aos joelhos dele.

Com o passar do tempo, percebi que os pais de meu encardido coleguinha não foram dos piores em matéria de escolher nome. Tive, ao longo da vida, contato com pessoas cujos nomes poderiam ser, facilmente, confundidos com malogro de magia negra.

A lista é interminável e pode ser subclassificada em categorias distintas, como, por exemplo, nomes de inspiração hippie. Tenho uma prima distante chamada Flor, namorei com Manhã, troquei idéia com Sereno e vi uma colega de colégio, após ter se mudado para o Vale do Capão, batizar o próprio filho de Raio. Perceba que sonoramente muitos deles são agradáveis, mas, pelamordedeus, chamar um recém-nascido assim é sacanagem. O pobrezinho sequer pode se posicionar contra.

Outra categoria muito comum é a junção de dois nomes para formar um terceiro. A lista a seguir não se trata de ficção. Todas estas pessoas existem e, com certeza, já passaram por algum tipo de terapia para superar tamanho trauma:

Raimundo + Wanilda = Rayvani
Hildete + Mário = Hildemar (é uma mulher!)
Francisco + Alba = Franalba
E as duas irmãs que, por terem um pai que amava o próprio nome e uma mãe que idolatrava nomes “estrangeiros”, ficaram assim:
Fernanshirley e Fernancheise.

Tem os que, não contentes com a própria miséria, eternizam poluições sonoras ao alcunhar o herdeiro com um nome que já passa há gerações através de Filhos, Juniores, Netos e até Bisnetos.

Minha amiga Martinha namorou um Gorgônio Filho. Nana, minha irmã mais velha, foi colega de Próculo Junior. Na moral, se eu fosse juiz e chegasse às minhas mãos um caso com qualquer um desses dois sendo acusado de abrir fogo contra inocentes numa sala de aula, eu procuraria um atenuante. Puta que pariu, mermão. Um cara que cresce sendo chamado assim tem o direito de perder o controle e atentar contra a vida de qualquer um, estando previamente justificado.

E tem, claro, aqueles nomes que são meros frutos do gosto duvidoso. A mãe de Próculo, que foi minha professora de geografia da sexta série, chama-se Zoraide; a cunhada de minha avó paterna é Zenóbia; uma das grandes amigas de Tia Zenóbia é Zínia; o ex-porteiro do condomínio Pedras da Colina, Eisenhauer Motta; e o campeão do mundo mundial, o professor de geofísica da UFBA, Telésforo.

O nome, entretanto, que até hoje me causa arrepio no espinhaço é o de uma das quatro irmãs de minha Vó Diva. Não pela sonoridade em si, Tia Armida, mas basicamente por dois motivos: 1) a inexistência da capacidade de abstração nas criaturazinhas humanas durante a primeira infância; 2) a inabilidade de Tia Armida em expressar seu bem-querer por mim. A única recordação que tenho dela é quando ia para a casa da minha Vó Diva e ela, sorridente, dizia:

- Diva, pega um saco de Paes Mendonça que eu vou levar esse menino pra morar comigo!

Eu tremia ao imaginá-la me colocando dentro daquele típico saco de supermercado, ainda em papel pardo com letras azuis-marinho. Tadinha! Mesmo agora, já falecida há mais de duas décadas, quando lembro, tenho calafrios. Não recordo de sua fisionomia, mas a sensação de pavor ainda me surpreende de vez em quando.

Tia Armida nunca teve netos, talvez por isso amasse tanto os três da irmã mais nova. Assim também era Dona Lúcia. Sonhara com uma neta que jamais veio, mas conseguiu realizar-se com Paula, a filha mais nova de sua sobrinha. Paula, por sua vez, de bom grado, aceitou aquela terceira avó. A amava de verdade.

Invariavelmente no caminho da escola para casa, pedia para ficar na “casa de Vó Lucia”. Desafortunadamente, nem sempre era possível, mas, quando o era, Paula e Lúcia ganhavam o dia. Brincavam horas a fio como se na sala houvesse não uma, mas duas crianças com cinco anos incompletos.

Na fazenda de Tio Rogério e Vó Lucia (somente na cabeça de uma criança tios e avós são casados), havia uma casa de boneca construída só para Paula. Não era uma casa daquelas de madeira que se coloca dentro de uma caixa e se esquece dentro do maleiro quando as bonecas são deixadas de lado pela pré-adolescente. Era uma casa erguida com tijolos, cimento, telhas e mobiliada na proporção perfeita para uma pessoinha viver ali. E Paula, nas férias, mudava-se para lá.

Foi no início de uma noite de outono que Liliana, com olhos mareados, interrompeu a brincadeira dos filhos com um sério pedido:

- Paulinha, Pêu, parem aí um pouco. Acabei de receber um telefonema avisando que Vovó Lucia sofeu um acidente na fazenda e está muito dodói. Vamos rezar porque ela tá precisando muito.

Paula largou os brinquedos na sala, voou para o quarto e pôs-se de joelhos a rezar. Rezou, rezou, rezou e, quando já estava exausta, rezou mais uma vez pedindo ao Papai do Céu que ajudasse Vó Lucia. Caiu no sono com as palmas das mãos juntas.

Na manhã seguinte, Liliana não a acordou com o beijo na testa de sempre. Foi uma lágrima materna que, ao tocar sua tez alva, a despertou. Vó Lucia não resistira mais aos ferimentos internos causados pela queda do cavalo e, de madrugada, enquanto Paula sonhava com a casa de bonecas, se foi.

Naquela manhã, Dona Lucia morreu para família e amigos; Deus, para Paula... e para mim também.
Este texto foi revisado por Paula Berbert

19 Response to "FÉ"

  1. Jessy Says:

    Ótimo texto!!

    Ri muito com os nomes... e tadinho do seu colega Cubatão, quer dizer, Ubatan... rsrs..

    E me emocionei muito com o final...
    Também tinha uma terceira avó que au amava muito e que infelizmente faleceu se não foi no dia do meu aniversário, um dia antes.
    Triste, mas as lembranças... as melhores!!!

    Adorei o texto!!

    Feliz Ano Novo!!
    Sucesso, saúde, felicidades.. realizações e alegria!!
    Beijoo

  2. Marina Prado Barral Says:

    Então, tem país que você tem que escolher o nome de determinada lista. Não pode sair assim inventando não. Acho um limite bem civilizado.

  3. Multiethnic Says:

    Emocionante... Para mim, que sou católica apostólica romana, frequentadora assídua da igreja e cheia de fé em Deus_ só não acredito e nem sei pra que taaanto santo, fala sério_, ofinal foi triste e meio chocante. Deve ser pq acreditar em Deus me faz melhor e mais forte. Mas seu texto, como sempre, está divino (é até contraditório, né?). PErfeitamente bem escrito, adoro a forma como você conecta fatos que, aparentemente, não tem PN a ver. Pire aí, o nome de minha mãe é Genilva, minhas tias Genedalva, GEnilza e Genilda e meu tio Gerson. Os únicos tios com nomes normais são esses sortudos: Maria Lúcia, Rita e Antônio. Minha vó deve ter ficado com pena de continuar a sequência. E a mulher que trabalhou em minha casa quando eu tinha 5 anos, além e ser muto esquisita se chamava Gracidina. Parece nome de remédio... Feliz ano novo, professor, muita positividade... e luz.

  4. Cris O Says:

    Eu parei de acreditar em deus quando desconfiei que ele tinha alguma relacao com a maior fraude do planeta, o velhinho safado Papai Noel. Mas em relacao a nome que sorte que meus pais nao resolveram entrar na brincadeirinha sem-graca de juntar nome. Já imaginou a aberracao que sairia da juncao de Delzira e Valter? Melhor nem pensar...

  5. Multiethnic Says:

    É poético e verdadeiro: promessas viram mentiras em janeiro... as minhas ainda n, mas acho que n tiv tempo suficiente ainda... Obrigadinha pelo seu comentário, fiquei muito feliz com o "Genial!!!"

  6. Alexandre Beanes Says:

    Massa é que Silvano (Joe) e Alexandre (Rex) passam batidos na história...rs...dois expoentes!!
    E olhe, meu tio Ascendino entra fácil nessa lista.

  7. Anônimo Says:

    acompanho seus textos. tem coisas até interessantes, como aquele das rimas.
    mas tem vezes que acho um samba do crioulo doido. você mistura muito.
    se é intencional, prefiro minha ignorância.
    esse, por exemplo, poderia ter ficado somente na questão dos nomes... se passou !

  8. anaÊ Says:

    É que lendo, lembrei de 2 pessoas que conheci e cujos nomes e sobrem=nomes, juntos, se tornam estranhíssimos:

    - Amando Rola (que tem resposta para qualquer piadinha que possa surgir)

    - Armando Guerra (que se apresentava sempre com a seguinte frase: "O homem da paz!").

    Incrível como essas pessoas se adaptaram e levam numa boa.

    Outro assunto: conhece alguém que possa revisar um texto de um amigo? De preferência alguém que tenha um preço em conta. Pede para entrar em contato, por gentileza: anaelisa@gmail.com

    Grata,

    Ana Elisa

  9. Daniela Henning Says:

    Vou creditar somente à fragilidade do corpo — açoitado pela gripe e sabe-Deus-mais-o-que — essas duas lagriminhas que toldam meus olhos agora.
    Texto da porra, viu?

  10. Anônimo Says:

    texto da porra??? isso é sério??? concordo com o outro anônimo lá em cima.
    a parte dos nomes tá legal. depois misturou sem necessidade. a tragédia em si não precisava desse sentimentalismo de novela de quinta categoria. era só para justificar o título?

  11. Anônimo Says:

    ligue não, teach.

    achei legal o texto! sofria com meu nome. hoje já acostumei e não ligo mais para apelidos.

    abs

  12. Andrea Marques Says:

    Sim, o texto é maravilhoso.

    E tem mais: vibro com sua capacidade impressionante de nos conduzir a um fim sempre inesperado, levando o leitor a um outro tema. Como se sua crônica - de repente - virasse um conto.

    Esse texto, particularmente, conduz uma alegria cômica a uma tristeza infantil, unindo fatos e personagens em ganchos temáticos inesperados.

    Parabéns pelo seu jeito singular de escrever.

    Obrigada por nos brindar com sua memória privilegiada e sua intelectualidade.

    Saudade.

    Com carinho,
    Dea.

  13. salix Says:

    Me identifiquei muito com seu jeito de escrever, com seus diminutivos e "mundo mundial" (que eu absorvi de Garcia, professor de Física da UFBa).
    O texto juntou muitas experiências e informações sem propriamente conecta-las; acho que teriam sido 3 excelentes textos distintos.

    Saludos russos (adorei o "carnaval russo", by the way);D


    AH!, e um VIVA ao amor de vocês, que 2009 seja brilhante pra vida de cada um e dos dois em conjunto, em uma série de muitos muitos muitos anos maravilhosos.
    Agora beijo e não saludos ;*

  14. salix Says:

    outra coisa
    o que é que o olho do cavalo tem a ver com tudo o mais?

  15. Paula Says:

    Amor,
    esta querida aí em cima é "A Russa", a garota que eu digo que parece com sua irmã, Nana.

  16. Unknown Says:

    ...muito bom Lu...


    Mas eu não qria q Tia Lúcia tivesse morrido, e nem que a Paula tivesse ficado triste!


    :)

  17. Anônimo Says:

    Já sabia que vc tinha esse talento todo cheio de uma mistura gostosíssima de elegância, graça, ironia inteligente,e perspicácia para o incomum. Mas tudo num só texto ficou surpreendente. Como é bom a gente ler, se divertir, se empolgar, e ainda lembrar de tantos momentos engraçados lá no jardim da Cultura. Pensa que me esqueci de vc e Luciano "imitano" os diferentes sotaques baianos? Ou de vc citando as palavras que sempre vêm com uma combinação (collocation) inevitável?
    Oh, saudade!
    Um beijo
    Vera

  18. Irmão Says:

    Porra! Esse eu ainda n tinha visto! hehehehe.. HurruuU!!!!!!!!!

  19. Irmão Says:

    Porra! Esse eu ainda n tinha visto! hehehehe.. HurruuU!!!!!!!!!