CRIATURA HORRIPILANTE

Tem certos dias em que não deveríamos, sequer, cogitar a possibilidade de levantar da cama. Por que não há uma lei regulamentando isso? Ontem foi assim. Acordei tarde (6:40 a.m.), tomei banho gelado, pois o chuveiro queimou assim que girei a torneira, fiquei sem café da manhã para não deixar meus alunos esperando muito – àquela altura já estava, de fato, atrasado. Quando cheguei à garagem, percebi que tinha esquecido parte do material. Subi correndo os 10 lances de escada que separam a garagem do meu apartamento, notei que esquecera a chave de casa na ignição da moto. De raiva, quase bati a cabeça na parede. Desci correndo os 10 lances de escada que separam o meu apartamento da garagem, peguei a bendita chave, subi os 10 lances de escada que separam a garagem do meu apartamento, peguei o material, chequei para não esquecer mais nada, desci correndo os 10 lances de... você já sabe, guardei o material no baú da moto, coloquei o capacete, ajustei os óculos escuros, botei a chave na ignição e... quem disse que consegui girar a chave pra fazer o motor funcionar? O miolo da ignição travou por causa da chuva do dia anterior! Como assim, uma chuvinha de merda acaba com uma peça que custa mais do que a soma dos meus salários dos três estabelecimentos em que ensino. Como assim, mermão!?

Peguei o material no baú, pus o capacete lá, corri para um ponto de táxi que tem aqui, na rua debaixo, liguei para o celular de um aluno avisando que chegaria atrasado. Tentei relaxar durante o trajeto, pois o dia ainda seria longo! Chegando à UFBA, paguei pela corrida o mesmo valor de uma promoção da Mc Donald's. Corri até o PAF III, esperei o elevador descer do último andar e, finalmente, agora sim, finalmente mesmo, cheguei à sala 310, onde meus queridos alunos se aglomeravam na porta. Coloquei meu material na mesa, sentei na minha quase-confortável cadeira, respirei fundo e quando, por acaso, olhei para o chão, percebi que o pé esquerdo da minha bota de trekking – comprada há menos de um ano – tinha rasgado, deixando a meia branca, na altura do mindinho, exposta para quem quisesse ver. Putaquepariu!!!!! Sapato furado é foda! Sapato furado é roteiro de filme trash com pretensão de ser cult!

Após as duas primeiras aulas do dia, fui ao Departamento de Germânicas, no segundo andar do Instituto de Letras, logo ao lado do PAF III, para filar o café de Glenda, a secretária mais eficiente do mundo. Além da competência incontestável na sua área de atuação – não reconhecida por alguns membros da aristocracia germânica –, Glenda prepara o café mais saboroso de Salvador e região metropolitana. Chegando lá, encontrei também Claudia Mesquita, minha eterna professora de Sintaxe, que me perguntou como eu estava. Desconsiderando o fato de ter sido uma pergunta meramente formal, relatei todos os acontecimentos daquela tenebrosa manhã de quarta-feira. Juro que eu esperava uma reação de solidariedade. Porém, não foi o que aconteceu. Voltando-se para mim e para Glenda, retrucou:

Claudia – Pior foi o meu dia ontem.
Glenda – E isso lá é possivel? Pior que isso?!
Claudia – Dei aula das 7:00 às 11:00 com uma exaqueca daquelas. À tarde, não agüentei mais e fui para o hospital. Fiquei sob observação, fazendo exames e sendo medicada até o comecinho da noite. Se não bastasse a zonzeira dos remédios, quando cheguei em casa ainda tive que enfrentar uma barata.
Glenda – Afe! A pior parte foi a da barata! Parece filme de terror!
Eu (pensando) – Como assim, a barata foi a pior parte?! Como assim?!

Fiquei imaginando os testes que José Mojica, o Zé do Caixão, aplicava na seleção de atores para seus filmes. Como os orçamentos eram reduzidíssimos e não havia grana para efeitos especias, ele utilizava bichinhos tipo morcegos, cobras, aranhas e baratas de verdade. Então, o ator que conseguisse tocá-los ou tolerá-los passeando pelo seu corpo estava aprovado! Filme Trash com T maiúsculo! Sem subterfúgio. Tipo Ed Wood (1924-1978), diretor e produtor estadunidense que ganhou notoriedade pelas soluções pouco convencionais ante problemas orçamentários dos seus filmes de terror e ficção científica.

Certa feita, convidou Bela Lugosi (1882-1956), o famoso Drácula dos anos 30 – esquecido com a decadência dos filmes de terror nas décadas seguintes –, para estrelar Plan 9 From Outer Space. Lugosi, infelizmente, morreu após a primeira semana de gravação. Para aproveitar o que já havia sido filmado, Ed Wood encontrou um outro ator que tinha os olhos parecidos com os de Lugosi e terminou o filme com a personagem usando uma capa que, apoiada no antebraço diante do rosto, deixava apenas os olhos de fora. Inacreditável. Um filme inteiro com apenas os olhos do protagonista à mostra.

Foi justamente essa forma de empunhar a capa diante do rosto que me salvou durante um terrível embate contra um determinado tipo de inseto cosmopolita, cujo principal problema que pode causar à espécie humana é a atuação como vetor mecânico de diversos patógenos, tais como bactérias, fungos, protozoários, vermes e vírus.

Era uma noite sem lua e de vento frio. As primeiras horas da madrugada já avançavam no antigo relógio de parede e minhas pálpebras não suportavam mais o peso do cansaço. Fui até meu quarto, enfiei-me debaixo das cobertas, apaguei o abajur e fiquei esperando o sono me tomar de vez. Foi quando, envolto no manto escuro da madrugada, ouvi aquele ruído característico de asas e das anteninhas que riem sadicamente do nosso pavor. Acendi a luz e lá estava, acintosamente pousado na janela do meu quarto, um baratossauro. Insitintivamente lancei mão do pé direito da minha bota de trekking recém-comprada e fiz menção de arremessá-lo contra o monstro cascudo. Refuguei ao lembrar que a janela era de vidro. Resolvi, então, com o lençol a tiracolo, correr até a área de serviço e pegar o Baygon!

Voltei pé ante pé, usando o lençol à guisa de “capa de Bela Lugosi” para me proteger de um possível rompante de fúria do inimigo que me espreitava. Naquela época, meu quarto tinha poucos móveis: apenas a cama, o armário e três almofadas enormes no chão, encostadas na parede, bem em frente à cama. A primeira coisa que notei no campo de batalha foi que a miserável não estava mais na janela. Feladaputa, pensei. Vasculhei o ambiente com os olhos e não consegui nenhum contato visual. A única possibilidade então eram as almofadas!

Com o braço esquerdo segurando o lençol a la Ed Wood e o braço direito estendido à frente do corpo, empunhei o spray letal. Chutei longe a primeira almofada e despejei sem piedade o líquido mortífero. Assim que a pequena névoa sufocante se desfez, vi que o ser infecto não estava lá! Putaquepariu, putaquepariu, putaquepariu, quase berrei. A tensão aumentou. Tinha que ser agora! Proferi um certeiro golpe com meu pé canhoto na segunda almofada e novamente atentei contra a vida do enviado das trevas! A nuvem se dissipou e nada! Como assim? Quem é o roteirista dessa merda?, questionei. Era a útima almofada! Quase debruçado sobre ela, mão suando e olhos fixos no que poderia sair dali, pontapé, almofada voando, spray aniquilante, nuvem que se desfaz e... nada! Fiz aquela velha cara de interrogação e quando retornei à posição ereta percebi, com a minha visão periférica, um vulto na parede, bem na altura da minha cabeça! Virei e me deparei com a encarnação do capeta balançando as anteninhas para mim, a menos de 30 cm do meu rosto. Argh!!!!! Dei um salto pra trás no estilo Matrix e, ainda no ar, alvejei a escória do esgoto com uma sprayzada certeira. A desgraçada caiu no chão e, mesmo cambaleante, fugiu na tentativa de salvar sua mísera vida! Com o tubo cilíndrico de veneno a 10 cm de distância, impiedosamente fui despejando todo seu contéudo sobre o troço nojento que pelejava para escapar. Atravessou meu quarto, cruzou a porta, arrastou-se pelo corredor, entrou no quarto de minha irmã e foi aí que parei. Afinal, jamais acordaria minha amada irmãzinha no meio da noite com jatos de veneno.

Na manhã seguinte, quando acordei, minha mãe e minha irmã já estavam tomando o café da manhã. Juntei-me a elas e travamos o seguinte diálogo:

Mãe – Kika tava aqui me contanto que quando acordou achou uma barata morta ao lado da cama.
Eu – Que coisa, hein?
Kika – Deve ter entrado pela janela. Só vou dormir com ela bem fechada a partir de agora.
Eu – Que nada, Kika, relaxe. Isso não vai acontecer de novo.
Kika - Como você pode ter tanta certeza?
Eu – Intuição, Kika. Intuição...

Texto revisado por Nídia Lubisco

8 Response to "CRIATURA HORRIPILANTE"

  1. Glenda Rodrigues Says:

    ...sim! Genial descrição!! *encarnação do capeta*!




    [coitada de kika!!!!]

  2. Anônimo Says:

    sem comentários... sei que eu tenho dias ruins, mas os seus, quando são ruins, sao pessimos mesmo.
    poxa, fiquei horas tentando adivinhar para ganhar a promoçao do almoço... mas confesso que minha imaginação nao foi tão longe.
    quanto ao desfecho do dia nem precisava ser relatado, bastava ver a cara 'feliz' com que vc deu aula aquele dia. risos
    adorei o texto... muito bom mesmo
    hum, atualizei lá...

  3. Multiethnic Says:

    Ah, como eu odeio as baratas...E que dia medooooooooooonho esse se, hein?! Dava uma esquete muito legal, eu assitiria no teatro e talvez até chorasse... Maravilhoso texto, Professor.... Ah, sim, não seria "cambaleante" ao invés de "cabaleante"??

  4. Multiethnic Says:

    Ixe, precisa pedir pra adicionar?? Que formalidade... te adicionei e nem pedi. Desculpinhas com limão e açúcar, tá?? E, como diria o sábio Seu Zé (é o pedreiro oficial da famíla...muito bom ele, recomendo):
    "Mas é craro que pode... Oxe, oxe, oxe..."

  5. Mariana Paiva Says:

    tô aqui rindo tanto, coitada de Kika, vc é um irmão ruim, deixou o baratossauro entrar lá.

    seu ruim!

    beijo

  6. Mariana Paiva Says:

    e vá em meu blog, eu ia até postar sobre Ed Wood hoje, sobre "A noiva do monstro". beijo

  7. Cris O Says:

    bleeeeeeeaaaaaarrg!!!! Barata, é sem dúvida nenhuma, a coisa mais asquerosa do planeta. Eu também já assassinei uma dessas coisas de forma parecida. Tenho inclusive uma foto tirada por Silvinha pra provar. No dia que abrirem o Museu do Mau-Gosto e das Coisas Asquerosas, esta foto com certeza vai estar lá.

  8. Paula Says:

    NUNCA FAÇA ISSO COMIGO.
    Pode me acordar, me despertar no meio de qualquer sono, qualquer negócio. Fiquei nervosa, socorro.