E AÍ, DUDA?

Supertrunfo começou a ser produzido no Brasil nos anos 70 pela Grow, mas só ganhou popularidade na década seguinte. Podia ser jogado por qualquer pessoa alfabetizada e consistia em tomar todas as cartas dos outros participantes. Originalmente com automóveis e outros veículos automotores, cada uma das 32 cartas trazia uma foto com os detalhes da máquina em questão e suas características, tais como velocidade, HP e 0/100 km/h.

Sendo criado entre duas irmãs, nunca encontrei um oponente em casa. Meus vizinhos do Condomínio Caminho das Árvores, na Av. Paulo VI, onde morei até meus treze, quatorze anos, eram parceiros e rivais. Geralmente jogávamos no comecinho da tarde, enquanto esperávamos “o sol esfriar” um pouco para então bater o baba, brincar de siga-o-mestre, polícia-e-ladrão, andar de patins ou partir em nossa aventura predileta: pegar as bicicletas e explorar todas as ruas da Pituba, Itaigara e Caminho das Árvores... sem a autorização dos pais, é claro.

Essas excursões começaram, na realidade, com o aprimoramento da brincadeira siga-o-mestre, que, originalmente, acontecia só no playground. Percebemos, então, que seria mais excitante se fosse de bicicleta, entre o gramado e a garagem. Até que um dia, Túlio – conhecido pelas traquinagens e merecedor de uma reunião extra entre moradores do Ébano e do Álamo para deliberarem sobre a punição ideal pelo esvaziamento de todos os extintores de todos os 8 andares dos dois prédios que formavam o condomínio – passou pelo portão da garagem, tomou a rua como se estivesse entrando na própria sala de estar e ganhou o mundo. Nós, fiéis escudeiros, seguimos o mestre. Desta tarde de quinta-feira em diante, todas as incursões ciclísticas visavam à expansão de fronteiras.

Uma das melhores aventuras foi quando pedalamos por toda a Paulo VI no sentido Caminho das Árvores – Correio Central, viramos à direita, avançamos por aquela transversal em direção à ASBAC, quando vimos surgir à esquerda, para o nosso regozijo, o estacionamento do Paes Mendonça (atual Bompreço). Era descomunal. Um verdadeiro parque de diversões cheio de obstáculos, além da verdadeira emoção de automóveis vindo em todas as direções. Era uma bagunça maravilhosa!

Minha mãe só fazia compras lá, até a construção do Hiper Paes Mendonça, ao lado do Shopping Iguatemi. Adorava ir com ela, apesar das horas de espera na fila das caixas registradoras e do atendimento tosco. As funcionárias pareciam fazer favor, e com muita má vontade. Eram extremamente grosseiras e não tinham idéia do significado da expressão “tratar bem”. Se hoje reclamamos dos serviços tradicionalmente ruins na capital baiana, imagine naquela época em que nem se sonhava em atendimento de excelência! Toda vez que nos deparávamos com alguma grosseria por parte de vendedores ou prestadores de serviços em geral, ouvia D. Nídia Lubisco dizer: “até parece caixa de Paes Mendonça”.

Como sempre digo aos meus alunos: “melhor não é bom. Se você tirou 1,0 na primeira avaliação e 2,0 na segunda, melhorou 100%, mas ainda continua uma porcaria”. Nos últimos 20 anos, o atendimento ao público deixou de ser horrendo e é somente muito ruim. Algumas empresas, entretanto, têm a cara de pau de utilizar o bom-trato como diferencial. Como assim, diferencial?! Isso não é pré-requisito? Tratar bem o cliente não deveria ser algo extraordinário, mas sim corriqueiro, da mesma maneira que devemos cumprimentar o porteiro do nosso prédio, dar bom dia ao entrar no elevador ou ceder o assento aos mais velhos. E, além do mais, se eles querem mesmo vender, me convençam a voltar.

Boa vontade, entretanto, não é o suficiente para garantir sucesso no que concerne a um bom relacionamento entre funcionários e clientes. Treinamento é imprescindível. Excesso de zelo pode ser desastroso. Quantas vezes entramos numa loja e o/a promotor(a) de vendas (não há mais vendedores nesse país, pois é politicamente incorreto, assim como não há mais contínuo, apenas auxiliar de escritório) nos chama de “meu bem” ou “querido”?

Lembro de uma vez em que fui comprar jeans. Ao entrar na loja, a sorridente vended... ops, promotora de vendas, que diga, me cumprimentou e logo perguntou meu nome. Para evitar a típica cara de interrogação das pessoas que ouvem Lubisco pela primeira vez, resolvi simplificar e disse, a contragosto: Eduardo. Escolhi um par de tom claro, daqueles que já parecem velhos, sabe? Adoro. Fui ao trocador experimentar enquanto Márcia (esse era o nome dela – lembrei) ia à busca de um número maior, caso a cintura apertasse muito meus pneus. Passados alguns minutos, ela bateu na porta da cabine onde eu pelejava pra fechar o zíper e perguntou: “ficou boa, Duda?”. Duda?! Duda?! Puta que pariu, mermão! Como assim, Duda?! Como assim?! Comprei uma calça em outra loja por quase o dobro do preço, mas com o prazer de ser tratado como um cliente e não como o brother que senta à mesa do boteco pra comer água.

Em 1992, um colega de 2º ano colegial perdeu o pai inesperadamente. Infarto fulminante. Toda a turma se solidarizou diante da tragédia. Acho que, de certa forma, o pai dele – pensávamos – podia ser o nosso. Os mais próximos acompanharam tudo de perto. Inclusive a contratação do serviço funerário.

Por uma infeliz coincidência, tanto a viúva quanto o irmão mais novo do falecido contataram lojas especializadas no assunto. Quando perceberam o ocorrido, compararam os preços e decidiram contratar o serviço providenciado pelo tio do meu colega. A viúva, após inúmeras tentativas frustradas por telefone, resolveu ir pessoalmente cancelar a reserva, para não deixar na mão o rapaz que a tinha atendido magistralmente. Como a funerária era bem ao lado do hospital, ela queria aproveitar a oportunidade para andar um pouco e desanuviar as idéias. Com um pouco de insistência, a convenci de que seria prudente acompanhá-la, pois ainda estava muito recente, blá, blá, blá, blá...

Chegando lá, Minha Tia (como todos os amigos a chamavam) explicou a situação ao funcionário, que se mostrou muito compreensivo e até ensaiou algumas palavras reconfortantes. Depois de tudo resolvido, Sr. Washington (lembrei também) educadamente nos conduziu à saída, apertou a minha mão firmemente – devia pensar que eu era filho do morto –, olhou nos olhos de Minha Tia e, passando a mão no ombro dela, disse:
- Muito obrigado pelo cuidado da senhora mesmo num momento tão difícil. Não foi dessa vez, mas fica pra próxima...
Silêncio.
Nos viramos ainda estupefatos e, após uns três ou quatro passos, ouvimos:
- Voltem sempre!

Texto revisado por Paula Berbert

10 Response to "E AÍ, DUDA?"

  1. Ivan Says:

    sensacional!

  2. Alexandre Beanes Says:

    com toda educação do mundo seria aceitável um "vá à merda" num momento desses...rs...

  3. Andrea Marques Says:

    Eu, irmã de dois meninos, vivia brincando de Trunfo, jogo-de-botão, bobinho, ping-pong e outras tantas brincadeiras divertidíssimas que só é possível com os meninos!!! Fui menino até os treze!!! E me diverti muuuuuuuuuuuuuiiiiiiiiiiiiiiiiitoooo!

    Aí veio a fase das "festinhas no play" e a convivência com os garotos mudou de conotação...

    Seu texto está tão bem escrito que nem se sente que já se chegou ao fim. Nem se sente que "a sua mãe interfonou e disse que é pra você subir!"

    E que venham outros!

    :)
    :)
    :)

    Beijos "maçã, pera ou uva?"!!!

    kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk

  4. silvana Says:

    Esse excesso de zelo no atendimento realmente irrita e nem sempre só o que está sendo atendido no momento.
    Certa vez uma vend... promotora de vendas ( muuuuuito eficiente) na tentativa de atrair a atenção do cliente (meu esposo) usou o seguinte "chamamento": "chani, psuisuisui..." (com o gesto do dedinho e tudo) E o pior é que ele gostou. Ah! se eu estivesse lá...
    Bjks

  5. Anônimo Says:

    por partes... bom dia no elevador é fundamental, mas nem sempre tenho chance (é que às vezes a viagem é curta)
    jeans apertando pneus é algo terrivel, por isso nao uso...
    agora a da funeraria foi incrivel. "COMO ASSIM" volte sempre? oxi, nem eu que falo muita bobagem nao ia largar uma dessas...
    Muito bom o seu texto. Poxa, quero ser 1/8 disso quando crescer. risos

  6. Multiethnic Says:

    Patakaparéu, professor, você escreve pá cacete...

    Mas ninguém vence minha prima nesse tipo de situação constrangedora e esquisita: a auxiliar de enfermagem do Hospital Salvador, na época em que ela lá foi parir, a chamava de Sassai (o nome dela é Sara) e queria batizar Belêu (minha sobrinha, Brenda...) muuuuuuito tosco...

  7. Angelo Says:

    Me vi em inúmeras situações nesse texto, encaixando os mesmos sentimentos de repulsa pela "desprestação" de serviços descrita na sua narrativa.

  8. Cláudia Says:

    E se você tivesse dito Lubisco, será que ela ia te chamar de "Lubi"???

    É por causa disso que uma amiga minha só vai em loja de departamento.

  9. Alexandre Beanes Says:

    qdo teremos novidades aqui?
    abraço

  10. anaÊ Says:

    Sempre rola uma confusão eterna entre EDUCAÇÃO e CARISMA nas épocas contemporâneas... seja num serviço prestado, seja quando acaba-se de conhecer uma pessoa.

    Parece que o mundo exige todo o tempo sorrisos e uma falsa intimidade.

    Vendedores e compradores: somos todos sujeitos. O trabalho nos coloca numa posição de máquina mesmo, insensível.

    Ser consumidor "exigente" também é algo cruel.

    É isso por enquanto

    Ana Elisa - visite: anadefato.blogspot.com