JOGOS INFANTIS

Estudei na Escola Teresa de Lisieux da alfabetização ao 3º ano colegial, ou melhor, até a metade do 3º ano, quando tive uma séria discordância com a coordenação do 2º grau e resolvi, mesmo sob o protesto da turma que eu oficialmente representava e com o apoio de todas as outras do 1º e do 2º anos, terminar meus estudos em outro colégio. O fato foi que, mesmo tendo fracassado na tentativa de fundar o grêmio estudantil, acabei me tornando, informalmente, uma espécie de conselheiro dos outros líderes de sala. Recorrentemente, minhas aulas eram interrompidas com um “com licença, professora, poderíamos falar com Lubisco?”. E lá ia eu, feliz da vida por sair da sala e com o ego inflado, aconselhar meus pares. Para um garoto de 17 anos, isso era fantástico!

O meu ingresso no Teresa não foi exatamente um passeio no parque. Eu estudara na pré-escola 123 Jardim de Infância, que funcionava em uma ampla casa construída para a função na Rua Guillard Muniz, mesma rua em que morava minha Vó Diva. Sair deste aconchego para uma escola com aproximadamente três mil alunos foi assustador. Chorei durante as primeiras semanas de aula, toda vez que minha mãe me deixava lá. Imagino a firmeza que Dona Nídia precisou ter para não fraquejar e deixar o filho esperneando nos braços da Tia Terezinha.

Tia Terezinha foi minha alfabetizadora. Pequenina – talvez por isso nos sentíssemos tão confortáveis com ela –, nunca levantava a voz. Pacientemente, todos os dias, fazia a lista da merenda, chamando um a um, anotando os pedidos e recolhendo o dinheiro. O recordista mundial entre os pedidos era o “sonho com guaraná”. Havia o time da “banana real com Coca-Cola”, mas era minoria. Se algum partidário do combo nº 1 ousasse pedir outra coisa, logo vinham os olhares de “como assim, banana real?! Como assim?!”...

Entre um lanche e outro, nos alfabetizávamos! Lembro claramente do livro A Casinha Feliz. Toda a minha geração conheceu Vavá, Vevé, Vovô, neném, a vaquinha Mumu e o galo Cocó. O método se baseava no reconhecimento das letras, a união delas formando sílabas e, finalmente, a justaposição dessas forjando o milagre da palavra. Aprendíamos, então, a ler assim: m-m-ma, m-m-mãe, mamãe. Era massa. E, por fim, orações completas eram introduzidas (lá ele): Vavá leva neném? Neném leva Vavá? Surreal! Surreal!

O processo de aprender a ler é fascinante. Escraviza-nos. Só percebi isso quando, assim que voltei da Alemanha, fui morar em um quarto e sala com Lua, ali no Itaigara. Por coincidência, o nosso vizinho de porta era um velho conhecido da minha, na época, cônjuge. Em pouquíssimo tempo, Edinho e eu já éramos amigos e as duas famílias viviam de portas abertas, transformando os “apertamentos” em um confortável dois quartos. Edinho já era casado com Mima e tinham, há seis anos, uma filhinha chamada Julia – para nós, Jujuba. Hoje, Jujuba tem 10 anos e um irmãozinho de 5 meses, Vitor.

O almoço de domingo, mais que uma tradição, transformara-se num momento de lazer. Apesar do convívio diário, sentar à mesa, um servir ao outro, discutir questões que nos afligiam ou simplesmente jogar conversa fora sempre pareciam novidade. Mima, vez por outra, fazia uma macarronada com um molho de queijo provolone, gorgonzola, prato e parmesão. Uma delícia. O único problema era que, após a ingestão dessa bomba, ninguém conseguia fazer nada mais. Afundávamos no sofá e, prostrados, assistíamos a alguma coisa na TV até algum de nós recuperar o mínimo das funções vitais e conseguir balbuciar algumas quase ininteligíveis palavras e, assim, retomar a conversa que começara antes da primeira garfada.

Em um desses encontros dominicais, já estávamos almoçando quando Mima lembrou: “poxa, Lubis, não é light, mas tem Coca na geladeira. Quer?”. Ponderei por milésimos de segundos e, baseado no fato de que, excepcionalmente, não estávamos comendo a bomba, aceitei.

Mima se levantou, deu a volta no balcão que separava a cozinha da sala, abriu a geladeira, pegou a Coca-Cola, fechou a geladeira e trouxe-a até a mesa. Lua e Edinho, que conversavam animadamente, continuaram se entretendo. Eu, por acaso, percebi Jujuba assistindo, como se tudo acontecesse em câmera lenta, à chegada da garrafa pet na mesa. Olhar vidrado, mal piscava... Seguia com os olhos aquele totem de plástico à medida que Mima, educadamente, servia a todos. Juntei-me à conversa e, segundos depois, aqueles segundos que parecem eternidade, percebi que Ju permanecia hipnotizada. Parecia estar em uma dimensão paralela onde só havia ela e o rótulo vermelho-sangue da garrafa. Foi então que, repentinamente, interrompeu os adultos:
- “O que indústria brasileira?”
Como assim, o que é indústria brasileira?! Ela estava lendo! L-l-len, d-d-do, lendo.

Além de ler, desenhar assustadoramente bem e, já aos seis anos, saber distinguir música ternária de quaternária, Juju tinha um passatempo que eu, particularmente, adorava. Vez por outra, batia lá em casa e “Lubis, posso passar o aspirador de pó?”. Obviamente, eu jamais negaria aquele pedido, apesar da frase “trabalho infantil é crime” permanecer martelando a minha cabeça! Alguns minutos e zapt!, criança feliz e sala limpa! Maravilha! Nada como unir o útil ao agradável.

Entre as outras milhares de histórias que lembro, uma das minhas prediletas é justamente a que todos os meus amigos que têm filhos fazem aquela cara de “hum... sei exatamente como é isso” ou de “porra, como nunca pensei nisso antes!”.

Lua, que sempre teve um jeito incrível para lidar com criança – acho que está no gene, pois Anni, minha ex-sogra (se é lá que ex-sogra existe) tem um ímã de pimpolhos –, adorava, quando tinha tempo, ficar brincado com Ju. Era impressionante a maneira com que elas se conectavam. Se não fosse pela diferença de altura e pelos rompantes de adultez, era impossível saber qual das duas tinha 6 anos.

Era comecinho da noite de um domingo, provavelmente, e as duas já brincavam há horas. Eu, no desconfortável-sofá-cama-que-a-nossa-grana-permitiu-comprar, olhava a TV, quando fui surpreendido pelo seguinte diálogo que vinha da rede na varanda:
- E então, Juju, quer brincar de quê agora?
- Vamos brincar de descansar?
- Oxe, e como é que brinca disso?
- Assim, ó: a gente fica aqui deitada e descansa.
- Uhum... Sei, sei... (Pausa...) E quem te ensinou essa brincadeira, Juju?
- Meu pai!
Como assim, Edinho?! Como assim?!

Texto revisado por Paula Berbert.

10 Response to "JOGOS INFANTIS"

  1. Alexandre Beanes Says:

    Edinho é um gênio, man!! Hoje não, mas devia ter pensado nisso quando cuidava, vez ou outra, de minhha afilhada.

  2. Daniela Henning Says:

    Com um aval desse sobre meu humor (mais pra azedo que pra doce), estou me sentindo...
    Seu texto da Guillar Muniz me inspirou a escrever outro com reminiscências. Ainda não saiu, mas está no formo.
    Beijo!

  3. Andrea Marques Says:

    Verdade, não existe ex-sogra. A esposa vira ex, mas a sogra é para sempre. Que doido isso...

    Saudade de dividir o fundão (lá ele!!! rsrsrsrs) - da sala - com você, Xandão, Fabão, Tito Lívio e outras figurinhas mais...

    Eu me chateei com a escola antes, mas levei comigo quase todos os meus colegas. Às vezes acho que deveria ter ganhado comissão pelas matrículas do primeiro ano do Colégio Integral.

    Que honra ter estudado na mesma escola que você, Lubis! Que honra!

    Beijos!

  4. Anônimo Says:

    sempre soube do seu talento para dar conselhos e que bom que você surgiu pra me ensinar que o filho do visinho sempre serve pra alguma coisa. risos
    gostei muito...
    hum, você passa por lá, lê, diz que gostou e não comenta?? 'Como assim' criança?
    acabei de atualizar...

    beijos

  5. Kau Muniz Says:

    Eu gostava mesmo era de pãozinho com guaraná e um alfeles de quebra...rsrsrs
    Saudade do Teresa...de sentir aquele cheiro da cantina, de ver Flor todo se "bulindo", de conversar sentada no muro (e mesmo sentada no muro ficava menor do que Xandão), dos campeonatos, das peças no auditório de cantar um hino da escola...rsrsrsrs ("nosso lema nessa escola..."), de tudo...principalmente dos amigos.
    Encontrei Duda (mulher) no Balcão na sexta...me lembrou o Teresa, me lembrou vc e me deu uma saudade!!!!

    =)

  6. Paula Says:

    Eu já comentei contigo que este texto me enche de memórias...

    Lembro do Oficina, onde fiz o 2º grau, do clima das manhãs, da onda revolucionária do colégio e dos alunos, das movimentações, da rotina escolar, das coisas todas que giravam em torno daquele contexto, das aulas de Gramática que me deixavam amarradona... Era tão bom!

    Lembro também da minha chegada ao Isba, no pré-escolar, depois de ter estudado numa escolinha pequena chamada Escola da Graça, onde minha mãe ensinava (então, além de mudar drasticamente de ambiente, eu deixei de estar com minha mãe o dia inteirinho...).

    Lembro da minha alfabetização, do aprendizado único que ela representa. Não recordava muitos detalhes, mas sua fala me fez virem à mente os processos todos vividos e a ansiedade de ler, ler, ler tudo pela frente!

    Lembro também deste procedimento da compra do lanche. No Isba, não era a professora quem fazia: uma auxiliar da cantina vinha anotar os pedidos. Eu ficava toda feliz quando ia escolher meu lanche do dia, mas, na maioria das vezes, eu levava de casa. Então, além de me deliciar com as gostosuras, era um momento todo especial... Pãozinho e banana real eram meus preferidos!

    Lembro, também, de meus irmãos quando eram pequenos e das incríveis histórias que as crianças nos proporcionam. Pat era minha boneca, nascida quando eu tinha 11 anos, virou meu brinquedo preferido. Como era bom fazer as coisas com ela, vê-la aprender, vê-la se tornando gente! Já Rafa nasceu quando eu tinha 15 anos, então pegou minha fase mais aborrecente - por outro lado, uma relação mais tranquila, mais liberta...

    Enfim, haja sensações.
    Lindo texto, lindas histórias, lindas imagens.
    Te amo.

  7. Multiethnic Says:

    Adorei o texto, mesmo, mesmo. Em algumas passagens lembrei da minha escola, dos meus colegas, das nossas tentativas frustradas de erguer um grêmio na escola de freiras repressoras... Muito bom, professor, perfeito.

  8. Mariana Paiva Says:

    eu adoro essa história da brincadeira de descansar. ela nunca fica chata, por mais que vc adooooore contar. outro dia, aliás, vi Juju, Edinho e Mima na rua, só lembrei disso. Ri horrores.

    O texto tá ótimo, você e a revisora foram uma dupla ótima. :)

    beeeeeeijo, dudaportella

    marimarinho

  9. Ivan Says:

    é o poder das palavras! Muito bom relembrar as histósrias q já passamos por aí. imagine daki a 20 anos mais!
    ontem fui ao Bom preço e tinha um produto com data de validade até 2020, já pensou o q é isso dois mil e vinte!! são vinte anos do segundo milênio!!!

  10. Multiethnic Says:

    Que brincadeira massa... Tão interessante como "vamos brincar de arrumar tudo??" "Vamos brincar de almoçar??" Essas eu faço aqui, com meus bagulhinhos... Mas eles não gostam muito.