CONCORDÂNCIA

A formação dos Estados Unidos da América, “aquele pedaço de terra compreendido entre o México e o Canadá que deveria ser oceano”, como diria meu amigo Cyro, está intimamente ligada à perseguição religiosa sofrida pelos peregrinos, ainda na Inglaterra. Por isso, provavelmente, como sugerem diversos estudos, os estadunidenses acreditam ser uma nação predestinada, um povo escolhido por Deus, o que lhes confere o divino direito de intervir onde e quando for necessário em nome dos valores elevados que julgam defender. Tem sido assim no Iraque e no Afeganistão, hoje, assim como foi apoiando as sangrentas ditaduras na América Latina nos anos 60 e 70, majoritariamente. Sabemos dos casos de tortura e morte, aqui no Brasil, de pessoas que simplesmente desapareceram ou foram “suicidadas”, como o jornalista Vladimir Herzog, o Vado.

Essa brutalidade patrocinada pelo Uncle Sam ganhou proporções ainda maiores na Argentina e no Chile. Na terra de Maradona, o último golpe militar – 1976/1983 – deixou um saldo de 9 a 10 mil mortos e desaparecidos, segundo os dados oficiais. Porém, as organizações de direitos humanos, inclusive as Mães da Praça de Maio, contestam, afirmando que esse número pode chegar a 30 mil. No Chile, onde Salvador Allende fora eleito o primeiro presidente sul-americano socialista por voto direto, o General Augusto Pinochet, com a bênção da Estátua da Liberdade, assumiu o poder em 1973 e, até 1990, garantiu que 3.197 pessoas sumissem ou desaparecessem.

Da mesma forma que diversos brasileiros deixaram a pátria para morar em outras terras, chilenos e argentinos também o fizeram, como é muito comum em ditaduras violentas como as que assolaram o hemisfério sul do nosso continente americano. Conheço um rapaz de trinta e poucos anos que, em meados dos 80, se mudou para Salvador com a mãe e a irmã caçula para esperar pelo pai, também chileno, mas que por um motivo ou outro viria mais tarde. Nunca chegou.

A partir dos anos 90, houve uma nova leva de “hermanos latinos” chegando ao Brasil por um motivo bem mais leve: o futebol. Na realidade, ainda nas décadas anteriores já havia jogadores de outros países sul-americanos fazendo história por aqui: o argentino Ramon Rafanelli comandou a zaga do Bangu nos idos de 1949; o paraguaio Romerito foi campeão brasileiro pelo Fluminense em 1984; o goleiro uruguaio Rodolfo Rodriguez jogou no Santos e, no final da carreira, no Baêa minha porra, quando protagonizou, em 1993, uma cena patética na derrota de 6X0 contra o Cruzeiro, do então magro Ronaldinho.

Foi exatamente um estrangeiro que me fez retornar ao estádio Octávio Mangabeira, mais conhecido como Fonte Nova, após anos apenas assistindo futebol pela televisão. Arce, lateral direito paraguaio, fez história na seleção do seu país ao lado do zagueiro Gamarra, considerado por muitos um dos melhores na sua posição em todos os tempos, chegando a passar a Copa do Mundo de 1998, quando foram eliminados pela França na prorrogação, sem fazer uma falta sequer! Infelizmente, Gamarra defendia também o Inter de Porto Alegre, maior rival do meu Grêmio – duas vezes campeão brasileiro, três da Copa do Brasil, duas da Libertadores e uma do mundial interclubes. Arce, por sua vez, sob o comando de Felipão, dominou a lateral direita por anos, até ser contratato pelo Palmeiras, onde continuou sua carreira de sucesso. Pois bem, eu queria ver Arce jogar.

Eu batia baba no campo de barro do Clariana, um edifício aqui do Candeal onde Pedro Pererê e Mistério, da extinta Inkoma – banda de que Pitty também fazia parte –, moravam. Já joguei nos mais diversos lugares: asfalto, corredor de colégio, garagem, ladeira... mas esse campo deve ser o único do planeta que não tem nenhum lado paralelo. À primeira vista, parece um trapézio, por isso o time vencedor sempre escolhe atacar para a linha de fundo mais estreita. Dá um sufoco na defesa adversária. Entretanto, com um olhar mais apurado, percebe-se que as linhas laterais se encontram antes do infinito. Surreal!

Brandão, pai do melhor volante que já vi jogar, Emílio, marcava presença todos os sábados, estando sempre entre os primeiros a chegar, o que lhe conferia o direito de participar do primeiro baba. Este durava 20 minutos e não tinha limite de gols, enquanto os seguintes eram no esquema 15 minutos ou dois gols. Estas regras foram estipuladas para evitar confusões, pelo nosso COB, Comitê Organizador do Baba, presidido por Glauco e assessorado pelo próprio Brandão e por Doutor Valter, um boliviano que, no auge de seus quase 70 anos, jogava conosco e corria mais que muito garotão. E, já no final da tarde, na resenha na frente da barraquinha tomando água, desculpava-se: “poxa, Lubisco, naquele gol do último baba, não consegui acompanhar Jean (na época com 18 anos). É que joguei tênis pela manhã e já tava cansado.” Como assim, Doutor Valter, como assim?!

Foi Brandão, fervoroso torcedor do Bahia, sabendo da minha ausência nos estádios por tantos anos, quem me convidou para assistir BahiaXGrêmio pelo Campeonato Brasileiro de 1996. Mesmo tendo que ficar à paisana na torcida do rival, eu veria Arce. Disse sim!

Vesti uma bermuda azul, uma camisa branca e, por baixo das meias azuis, outras com o símbolo do tricolor gaúcho, time com história nefasta de racismo que, na sua origem, não contratava negros. Um nojo! Já tentei, mas não consigo desamar meu time! Como assim, Lubisco?! Como assim, me pergunto! Idiossincrasias, me respondo.

A Fonte Nova com seus aproximadamente 30 mil torcedores calou-se com o primeiro gol do Grêmio, assinalado por Carlos Miguel, antes dos 10 minutos do primeiro tempo. O silêncio nas arquibancadas contrastava com os berros de euforia ecoando dentro de mim (lá ele). No último minuto da primeira etapa, ainda, emudeci diante daquela massa sonora que comemorava o gol de empate. Como assim, Danrlei!? Que frango, porra. “Até minha avó com todo o reumatismo dela pegava essa bola”, resmunguei quase calado!

No segundo tempo, o Esquadrão de Aço parecia ter 22 jogadores. Eles atacavam por todos os lados o tempo todo. Só não marcaram duzentos gols porque a pontaria dos atacantes era sofrível e porque Danrlei, finalmente, fez jus à camisa número 1 e se redimiu praticando defesas indescritíveis. Àquela altura, eu torcia mais para o árbitro dar o derradeiro apito do que para o meu time. Foi quando, faltando dois minutos para o final do jogo, da intermediária, Arce acertou um petardo no ângulo esquerdo de Jean. “É goooooool!!!! Putaquepariu, golaço! É Grêmio, minha porra!”, gritei calado.

O silêncio dos torcedores durou somente até o término da partida. Depois disso, eu presenciei uma catarse coletiva. Gerações e mais gerações do técnico foram ofendidas. Jogadores tiveram sua masculinidade colocada em xeque, assim como foram jurados de morte pelos meus companheiros de arquibancada mais exaltados. Eis que surge, no meio da multidão, um senhor grisalho com ar apaziguador balançando levemente os braços abertos, com as mãos espalmadas para baixo e gritando:

- Pessoal, CALMAM, pessoal. CALMAM!


Texto revisado por Paula Berbert

10 Response to "CONCORDÂNCIA"

  1. Alexandre Beanes Says:

    o Grêmio é dos poucos times que ainda tenho simpatia, mesmo tendo sido o último a rir e pisar na cabeça do meu time na sua justa queda para a segundona.
    Depois dessa paraguaiada toda e de todas as confusões, Tevez ainda faz
    falta por lá.
    abraço

  2. Andrea Marques Says:

    E essa dor da ditadura ainda é muito viva na Argentina... Seu texto me fez recordar intermináveis conversas no jardim da minha casa em Córdoba. Amigos falando de uma política próxima, vivida em fotos de família. Sentimentos que se misturam: amor à terra e à cultura e ódio ao país político. São orgulhosos de suas origens européias e se odeiam a um só tempo. Têm vergonha da ditadura e dos seus governantes. E amam o Brasil... Logo o Brasil que só lhe reserva farpas e piadas sórdidas. Povo estranho que, contrariando a todos os meus compatriotas, aprendi a amar. Assim como você ama o seu Grêmio. Como assim??!!!??!!

    Pra completar, vivemos no mesmo bairro e meus irmãos devem ter jogado baba na quadra do Clariana com você. Futebol que até hoje eu consigo ver da minha janela - todo sábado tem jogo. Uniforme, árbitro, tudo.

    Amo demais os seus textos. Sua memória privilegiada, seu humor inteligente, suas tiradas sarcásticas. Sorte a minha ainda ter a sua amizade junto a mim e compartilhar momentos de lucidez, de graça e de carinho. Deveríamos tomar mais café juntos...

    Só pra contribuir: no 5º parágrafo, 7ª linha, há um erro de digitação (repetição da sílaba 'na').

    Beijinhos mil pra você e pra Paulinha.

    :)

  3. Paula Says:

    "elimiNANAdos pela França"????

    Não, eu me demito.

  4. lubisco Says:

    o erro, Déa, já foi eliminanado! rs. obrigado por todos os elogios e pela contribuição!

  5. Anônimo Says:

    humm... espero sinceramente que quando chegar aos 70 anos vc tenha mais folego do que muito garotão.
    risos

    xero

  6. Anônimo Says:

    atualizei... lembrei da banana da terra quando fui escrever.
    risos
    naum disse que os dotes culinarios ainda seriam explorados??

    xero

  7. Cris O Says:

    Calmam minha gente que bobabagem essa coisa de silalaba repetidada. Ficou bonitinho, algo tipo a língua de "p".

    Brincadeirinha. O texto tá massa. Me acabei de rir. Beijos

  8. Unknown Says:

    engraçado isso...
    tinha lido há uns dias esse texto, mas como cheguei a comentar, não estava com minhas atenções todas voltadas a ele e resolvi que só comentaria quando relesse.
    chego eu hoje na pós e a professora passa um filme que são 11 diretores mostrando histórias relacionadas ao 11 de setembro.
    se você não assistiu o filme deve estar se perguntando o que tem a ver uma coisa com a outra.
    é que um diretor britânico, Ken Loach, fala do 11 de setembro, mas o de 1973, que foi o auge do golpe de estado, na visão de um chileno exilado na Inglaterra.
    tem umas imagens de arquivo geniais.
    acho que vale a pena ser assistido (isso se vc ainda não viu).
    Nos outros 10 curtas que compõem o filme são mostradas outras visões interessantes de diretores de vários lugares do mundo (tipo países da áfrica, oriente médio...). na verdade só vi mais duas histórias, mas fiquei bem curiosa pelas outras. vou ver e depois falo mais (q inclusive já falei muito aqui).
    é isso... fica a dica!
    :)

  9. Daniel "Sansão" Mayrinck Says:

    gremista dizendo que o imortal tem passado nefasto racista???sabes a história, guri?
    no mais, nojinho é coisa de xita recalcada!
    sds gremistas, visite meu blog
    http://seteimortais.blogspot.com.br

  10. Priscila Says:

    Lubis,

    não querendo ser chata, mas já sendo. Resolvi "tirar o atraso" do seu blog e estive lendo alguns textos. Eis que me deparo com o seguinte trecho: "até ser contradato pelo Palmeiras"
    Acho que seria "contratado", não?
    Eu acho sua escrita tão perfeita, que na condição de paranóica com erros, não pude deixar passar e, aqui estou fazendo o papel de mala.

    Beijo!