O COLECIONADOR DE SELOS


Lembro-me de um teste vocacional que fiz ainda durante o segundo grau. Surgiram tantas opções que saí do atendimento pedagógico mais confuso que antes. Tive quase a certeza de que era um gênio das Humanas, pois todos os caminhos me arremessavam no sentido contrário dos números. Em 1994, entrei no curso de Musicoterapia na UCSAL, mas não terminei. Em 1997, ingressei em Letras (Língua Estrangeira/Inglês) na Universidade Federal da Bahia, onde hoje leciono como professor substituto.

Engraçado que nenhuma das minhas opções apareceu no resultado do teste cuidadosamente feito por Leli, então estagiária do NOE (Núcleo de Orientação Educacional) do Teresa de Lisieux. Também segundo a pedagoga oficial, Maria Helena Krushealgumacoisaquenãomelembrocomotermina, que me proveu com as possibilidades de caminhos profissionais a serem seguidos, Musicoterapia e Letras não estavam na lista. Ela tinha a certeza de que eu seria um “brilhante advogado ou, quem sabe, um publicitário de sucesso. Jornalista também podia ser uma boa, mas não dá tanto retorno financeiro assim”.

Sempre tive a impressão de que os testes vocacionais dos cirurgiões oferecem duas únicas possibilidades: cirurgião ou açougueiro. Comentei isso com minha amiga Drika, Terapeuta Ocupacional por profissão, que me afirmou que ambas carreiras buscam, de certa forma, uma sublimação da violência. Não é que eu estava certo? E nem li Freud! Devo ser, de fato, um gênio das Humanas!

Na semana passada, o meu terceiro molar inferior esquerdo sofreu de um processo infeccioso pela dificuldade de higienização, pois, por estar semi-ocluso, se formou uma cápsula que acumulava resíduos alimentares e transformou a área numa colônia de férias de bactérias. Lutamos contra a fase aguda – doía pra caralho –, mesmo sem eu poder parar de trabalhar, para, por fim, quando aliviada a crise, cortar o mal pela mandioca, como diria o Analista de Bagé (Luis Fernando Veríssimo).

Meu amigo Leandro Eloy tem um critério assaz curioso para experimentar – ou não – esses drinques exóticos que vêm com miniaturas de guarda-sol, pedaços de fruta, chamas coloridas etc. e tal: jamais beba algo cuja cor inexista in natura ou que o nome não possa ser pronunciado depois da segunda dose. Todo mundo tem seu leque de critérios para os mais peculiares assuntos. Hoje de manhã, presenciei duas alunas minhas, de Língua Inglesa em Nível Avançado do curso de Letras, conversando sobre o que supus ter sido o término do relacionamento de uma delas. Eram muitas as reclamações contra o pobre rapaz. Caio devia ser o capeta personificado. Após um ligeiro silêncio, a que aconselhava me saiu com esta: “Também, com esse nome! Caio! Só tem uma consoante. Nunca daria certo. Tanta vogal assim não tem ponto de oclusão. Aí, ó, o cara é todo esquivo, escorregadio. Olha, Tânia, nunca namore um cara com tantos encontros vocálicos.”

No geral, desconfio de profissões que necessitam de todo nosso fôlego para serem ditas. Naquela sexta-feira, porém, eu tinha um horário marcado com Dr. André, cirurgião bucomaxilofacial (ufa!) para extração do maldito siso.

Todas as pessoas do mundo já tiraram pelo menos um dos cisos e sempre têm algo a acrescentar diante de alguém prestes a vivenciar isso, nem que seja somente aquela cara de “ihhh, se fudeu!”. Nunca tive medo de dentista, até porque meu pai, Dr. Raphael Portella, é um exemplar dessa espécie de sádico. Entretanto, confesso que, ao deitar na cadeira para o exame clínico que precederia o procedimento cirúrgico, estava um pouquinhozinho impressionado com tantas histórias e casos. Dr. André, com um topete irretocável, deu uma olhada no dente em questão e atirou: “Huuummm... Esse é dos bons!” Como assim, esse é dos bons!? Como assim, negão!?, pensei.

Parecia um cenário de Kubrick: de baixo pra cima, só conseguia ver os olhos do dentista e de sua auxiliar, Cris, já que usavam aquelas máscaras cirúrgicas brancas. Via também um pedaço do teto branco e a luz do refletor, branca. Minha única distração era tentar acompanhar a carnificina através do reflexo nos óculos de proteção de Cris. Mas a remelinha no seu olho direito me incomodou mais que a minha curiosidade e resolvi permanecer de olhos bem fechados.
- Huum...
- (Falando com as sobrancelhas) Ai, meu Deus!
- Terei que utilizar a broca adiamantada para seccioná-lo ao meio. É maior do que pensava.
- (Com olhos semicerrados) Parou! Licenciado, não quero mais jogar isso, não.
...Zzzzzz... dddddrrrrrr... tuiiiiiinnnnnn...
- Ahá! Saiu... Olha aqui, essas raízes parecem postes.

Saí do consultório quarenta minutos após o início da sessão de tortura com um “esperado sangramento”, um leve desconforto em função da anestesia, além de uma lista com trezentos itens para uma melhor recuperação. Entre todos, um me hipnotizou: alimentação líquida/pastosa e gelada. Em outras palavras: sorvete. Extrair um dentezinho não podia ser tão ruim assim.

Dois dias depois, eu já não suportava a idéia de tomar sorvete. Queria mastigar, mastigar, mastigar. Estava quase depressivo. É muito triste ficar limitado em suas ações por causa de um... um... um dente! Tenho 1,80m. Quanto por cento da minha massa corporal corresponde o terceiro molar? E era justamente esse percentual irrisório que me proibia de tantas coisas. Cheguei ao ponto de ir a um churrasco na casa de Pat e Gabriel, naquele estilo cada um leva alguma coisa, e levei polpa de fruta. Como assim?! Os amigos comendo coração de galinha, picanha, calabresa, e eu levantando para bater um suquinho na cozinha!

Conversando com Xandão, quando voltávamos do churrasco com suco, ele me fez uma pergunta que não soube responder e julguei ser relevante para o meu processo recuperatório. Lancei mão do último item da interminável lista de Dr. André, que dizia: em caso de dúvidas e/ou emergência, entre em contato. O meu celular está ligado 24h/dia.

- Alô.
- Dr. André, aqui é Lubisco. O senhor extraiu o meu terceiro molar inferior esquerdo na última sexta-feira.
- Hum...
- Aquele que teve que ser seccionado ao meio com uma broca adiamantada senão ficaríamos lá até após o São João, cujas raízes mais pareciam postes!
- Ah, claro! Olá, Lubisco. Algum problema? Aconteceu algo?
- Não, não. Na realidade, queria pedir desculpas antecipadamente por ligar às 22:00h da véspera de um feriado só para tirar uma dúvida...
- Que é isso, pode perguntar.
- Bem, veja só... erm... eu posso beijar na boca?
- Huum... Como tinha dito, foi um dente muito volumoso e precisamos que se forme um grande coágulo de cicatrização aí...
- Lembro disso.
- Por isso, tantos cuidados. O antibiótico que você tá tomando vem lutando contra as bactérias da sua própria boca, certo? Não precisamos de outras bactérias aí... e uma outra língua é um corpo estranho, né?
- É?
- Até próxima sexta, então, só selinho!
Texto revisado por Paula Berbert.

15 Response to "O COLECIONADOR DE SELOS"

  1. Unknown Says:

    eu achando que vc ia ligar pra ele e perguntar se poderia comer carne, dormir com o rosto apoiado daquele lado no travesseiro, parar de tomar sorvete, ou até se poderia voltar às atividades físicas (digo esportivas)... mas não... rs.
    beijão e melhoras aí pra vc! espero que amanhã ele te libere ;)

  2. Paula Says:

    Ri revisando, ri relendo. Ótima história, ótimas interseções, ótimo texto, ótima revisão!

  3. Unknown Says:

    Lubisco, lembrei q passei pelo mesmo fato qnd eu tinha 15 anos. Tirei 4 dentes antes mesmo de nascerem (coisas d quem usa aparelho..) e ai.. foram 15 só tomando sorvete! logo no inicio achei o maximo, poh.. sorvete no almoço, no lanche, q perfeito! mas no segundo dia, aff..queria COMIDA!

    mas essa do cacau c leite.. vai ficar p historia! heuheueh

    beijo

  4. Anônimo Says:

    Humm. conheço bem essa historia.
    só selinho né? tadinho...

    xero

  5. Ivan Says:

    E tigelas de cupuaçí com Morango

  6. Alexandre Beanes Says:

    velho, ainda terei um treco lendo essas coisas aqui.
    abraço

  7. Unknown Says:

    hauhauhauhauhau!! me embolei de rir aqui com a pergunta pro médico (que na verdade achei mega pertinente!!)! ressalto aqui que eu arranquei os 4 cisos de uma só vez (um horror, apesar da boa recuperação!) e fiz algumas observações de lá do começo do texto:

    1. o meu teste vocacional não me indicou absolutamente nada! a criatura lá que aplicou o teste disse que eu deveria refazer... imagine?! deve ser po isso que tô voando por aí...

    2. dos três profissionais citados aí que eu conheço, jornalista ainda ganha melhor... e publicitário só se fo**!

    3. esse krush*¨%$#@=_*&¨% é kruschevsky? tive um colega na faculdade com esse sobrenome.

    ufa! é isso!
    :**

  8. catarina ribeiro Says:

    eu sei o que vc perguntou pra xandão :) tá, eu sei... eu me acho!

  9. catarina ribeiro Says:

    ah! é caty aí em cima ;)

  10. Unknown Says:

    D-E-L-I-T-G-H-F-U-L !
    Cá estou, em minha manhã de férias com ventania me deliciando com seus textos!
    Bravo!Já estava mais do que na hora de ter um blog!
    Este seu texto me lembrou uma piadinha :

    "Um casal dormia aconchegantemente em sua cama de King Size quando o marido maliciosamente começou a esfregar seus pés gelados nos pés de sua amada esposa.A esposa, percebendo as intenções do marido carente foi logo rebatendo:
    -Hoje não benzinho...amanhã bem cedinho eu tenho consulta marcada com o ginecologista e quero estar com tudo em ordem,limpinha e cheirosinha, se é que você me entende...
    Ao marido, só restou-lhe conformar-se com a situação, entretanto, 3 minutos depois:
    -Querida, você por acaso também tem consulta com o dentista amanhã???

    Beijos, Bia

  11. silvana Says:

    Acho que vc deveria processar esse dentista. Ficar só no selinho ninguém merece!
    Mas buscando um lado bom, vc tira folga e depois volta com força total.

  12. Paula Says:

    E você viu que chegaram aqui em busca de "rimas legais" e "Uma palavra que rima com cabeça"?

  13. Contando histórias, produzindo memórias Says:

    Muito legal, Lubi! Espero que você já esteja em plena forma. Um abraço!!! Sheyla

  14. Andrea Marques Says:

    E dizem que os cisos são os dentes do juízo... Não tenho mais nenhum deles, tirei todos. Sofri no último. Internada dois dias no Hospital Aliança. Infecção, assim, igualzinha a sua. Loucura, loucura... Quanto ao selinho... Ah... É bom, né? Dar selinho por aí... Ainda mais você, que adora escrever cartas!!!

    hahahahahahahahhahaha

    Um beijo!

  15. Elba Says:

    Bem, eu tb tirei o ciso... o do lado direito... por enquanto... ainda falta o esquerdo, o mais chato de tudo foi a receita do dentista pra mim:
    - Um atestado de dois dias (sem vir ao estágio);
    - Tomar sorvete e só comer coisas geladas;
    - Por pedras de gelo na bochecha.

    Tudo muito sofrido, rsssss, como sofri! rsssssss