Capiscum Annum


É muito comum as pessoas acreditarem que para falar uma língua estrangeira é necessário morar fora e que morar fora é sinônimo de aprender uma nova língua. Bem, jamais morei em nenhum dos 58 países falantes de língua inglesa e, entretanto, este é o idioma que ensino. On the other hand, morei um ano, três meses e 23 três dias na Alemanha e o máximo que consigo, além de contar e xingar, é cantar parabéns pra você.
Sorte minha que eles não têm também a versão longa-metragem com direito a “chegou a hora de apagar a velinha... que Deus lhe dê muita saúde e paz” (ad infinitum), sempre terminando com “é pique, é pique... rá, tim, bum! Fulano, fulano, fulano... aêêêê. Oxe, já pensou: rá, tim, bum! Friederisch, Friederisch, Friederisch! Como assim!?
Cantar parabéns na Alemanha era uma das poucas coisas simples de serem feitas, por isso aproveitei todas as oportunidades e cantei a plenos pulmões: Zum Geburtstag viel Glück, zum Geburtstag viel Glück, viel Glück zum Geburtstag, Zum Geburtstag viel Glück (Pelo dia de nascimento boa sorte, pelo dia de nascimento boa sorte, boa sorte pelo dia de nascimento, pelo dia de nascimento boa sorte).
Toda a minha geração ouviu a versão de Chico Buarque para Os Saltimbancos - musical infantil de Sergio Bardotti e Luis Enríquez Balacov. Pois bem, essa era uma adaptação da história dos Irmãos Grimm chamada Os Músicos de Bremen (Die Bremer Stadtmusikanten). Morei em Bremen.Quando cheguei, numa quinta-feira de inverno, fui recepcionado na Hauptbanhonf, após quase 6 horas sentado num vagão de trem que partira de Frankfurt, por Michal e René. De lá, fomos direto pra casa de Michal, onde os amigos dele nos esperavam para uma festinha... Coincidentemente, acabei morando durante toda a minha estada no segundo andar daquele mesmo prédio de três andares, que ficava bem atrás de uma pequena praça arborizada, na rua Neustadtcontrescarpe, 28.
No apartamento de dois quartos, cozinha, banheiro e nenhuma sala, nos aguardava o que parecia ser um time de rugby formado por junkies desbotados. Estavam fechados no quarto ocupado por Heiner, próximo à cozinha, incensando o ambiente. Deviam estar se dedicando à nobre tarefa com muito afinco, pois, ao tentar entrar, quase sofri traumatismo craniano com o impacto da fumaça.Vencida a etapa de apresentações (This is Micha, Toby, Timo, Hejar, Heiner und Matze), eles continuaram confeccionando origames transgênicos e produzindo fumaça suficiente para aumentar o aquecimento global em pelo menos 5ºC /dia.
Acomodei-me e, observando a situação, percebi que há uma diferença fundamental entre rituais maconheirísticos alemão e brasileiro: enquanto aqui o povo dá uns paus no baseado (lá ele gigantesco) e passa, lá o cabra fuma o quanto quiser e, quando estiver satisfeito, passa a parada. Quem for ansioso rói as unhas até o toco! Que angústia!
Esperei pacientemente chegar a minha vez. Dois tragos foram suficientes para nivelar o meu Q.I. ao de uma ameba. Cheguei a solicitar um band-aid cerebral, mas, surpreendentemente, não fui compreendido por aquele bando de albinos, apesar da minha mímica perfeita.
Ainda não sei como não há nenhum estudo sério sobre entorpecentes e aquisição de segunda língua. Com os resultados que imagino, haverá um grande fluxo de estudantes procurando cursos não mais nos EUA, Canadá ou Reino Unido, mas, sim, na Jamaica: Welcome to Marley's School of English. Que lindo!
Com o passar das horas, inexplicavelmente, eu e René já compreendíamos todos os diálogos travados no quarto. Proporcionalmente à nossa compreensão, aumentou a fome de todos. E cabe ressaltar que todos, aqui, significam nove homens de larica!Por talvez ser o que estava em pior estado, já que não havia ingerido nada durante a viagem de trem, perguntei a Michal se tinha algo para comer. A resposta dele me preocupou: “Acho que sim. Veja se tem alguma coisa na geladeira”. Como assim?! Cadê o famoso planejamento alemão?! Nove marmanjos se entupindo de THC e ele achava que tinha algo?! Como assim?! Rezei até a Salve Rainha na esperança de encontrar qualquer coisa maior e mais doce do que uma barra de chocolate ao leite Nestlé.
Reinando solitário na prateleira do meio, entretanto, cercado por absolutamente nada, um pimentão amarelo. UMPIMENTÃOAMARELO. AI-MEU-DEUS-COMO-ASSIM-SÓ-TEM-ESSE-PIMENTÃO-AMARELO?!

Entre o desespero da idéia de sair quase às duas da matina, num frio de -3ºC, para bater um rango no Kiosk dos turcos na rua de trás e a resignação de dormir faminto, voltei para o quarto e, empunhando o vegetal, perguntei aos donos da casa o que faríamos com aquilo. Heiner, que dividia o apartamento com Michal, levantou-se, pegou o pimentão e dirigiu-se à cozinha. Pensei: na certa, vai fazer uma receita de pimentões recheados, ensinada pela avó, que, por sua vez, aprendera durante a segunda guerra, a fim de reaproveitar sobras de outras refeições.
Poucos minutos após desaparecer na bruma, Heiner adentrou o quarto sob o olhar atento dos outros oito famintos remanescentes e, triunfante, colocou o prato em cima da mesa com o pimentão todo fatiado. Como assim, negão!?(Suspiro) Foi desta maneira que atordoamos a larica! Nove trogloditas se deliciaram com fatias daquele Capiscum Annum de cor-pigmento primária e cor-luz secundária, resultado da sobreposição das cores vermelha e verde que se encontra entre as faixas 565nm e 590nm do espectro de cores visíveis.

4 Response to "Capiscum Annum"

  1. Anônimo Says:

    foi fome, vontade de comer ou desespero mesmo? aff, eu detesto tudo que tem pimentão. cruzes... confessa que vc preferia a barrinha de chocolate ao leite agora? hehehe
    mas, que bom que a criatividade sempre salva as pessoas, mas 9 criaturas pra um pimentão só... tadinho do pimentão, não teve nem chance de escapar.kkkkkkkkkkkkkkkkk

    xero

  2. silvana Says:

    Eu também engrossava a lista dos que creem na relação morar fora X falar uma língua. E cria piamente que esse era o seu caso.
    Usando as suas palavras: Como assim, você é um professor de inglês tão bom e nunca morou em Países de língua inglesa? Como assim?! On the other hand, minhas esperanças aumentaram. Um dia, quem sabe, talvez, consiga falar inglês tão fluentemente quanto você. Por que não? Excetuando-se o fato de não creio em reencarnação, a esperança é a última que mata!
    Bjs

  3. Paula Says:

    Uma fatia de pimentão amarelo cru? Na tora??... Eu me conformaria com a aflição da larica inteira.

    Ah! Quando eu bebo, meu Inglês melhora consideravelmente.

  4. Unknown Says:

    hahahahahaha!!!
    "como assim negão?!" foi a melhor parte!!!

    mas eu andaria no frio pra comer lá no kiosk! com "certazatag"