VIZINHANÇA

Oitenta decibéis é o limite de intensidade sonora que o ouvido humano é capaz de suportar sem risco de lesão do aparelho auditivo. A partir daí, os danos variam desde um ligeiro desconforto até perda da audição.

Já faz um tempo que ando com um protetor auricular a tiracolo. Cansei de voltar de shows e festas com o ouvido apitando. Mesmo chegando em casa exausto, aquele zunido agudo e intermitente me impedia de dormir.

E, na verdade, o que me levou mesmo a tomar esta atitude profilática não foram os enxames de abelhas dentro da minha cabeça enquanto eu rolava na cama, mas uma aluna que tive. Como parte do processo avaliativo do curso de inglês, onde ela fora minha pupila, os alunos, no final do semestre, preparavam uma apresentação oral sobre um tema de sua preferência. Ela, fonoaudióloga e dona de uma loja especializada em aparelhos auditivos, discorreu sobre os riscos da exposição prolongada a altos volumes e possíveis medidas preventivas.

No final da apresentação que lhe rendeu a nota máxima, mencionei o zumbido pós-show que me acometia todos os sábados e domingos. Após algumas perguntas mais específicas, Julia disse que eu deveria ser submetido a um teste audiométrico a fim de diagnosticar algum sinistro no meu equipamento receptor de impulsos sonoros.

No dia seguinte, fiz a avaliação e, para a minha tranquilidade, nenhuma perda foi detectada. Entretanto, fui alertado que deveria tomar cuidados especiais, pois com a alta frequência em shows de rock, os próximos resultados poderiam ser bem diferentes. Como forma de me estimular a adquirir um novo hábito, ganhei gratuitamente um protetor auricular sob medida.

Hoje em dia, fico impressionado com o volume que algumas pessoas escutam som no carro. Parecem trios elétricos. É surreal! Na segunda-feira de carnaval, parei na loja de conveniências de um posto de gasolina para comprar sorvete de chocolate e Coca Zero, pois tinha alugado quatro filmes e estava decidido a assisti-los até a hora de ir buscar Paula, minha namorada, que estava trabalhando na festa momesca. Estacionado bem na frente da entrada principal da lojinha, um automóvel com o porta-malas aberto. Dentro deste compartimento traseiro projetado para carregar volumes, havia caixas de som que ocupavam todo o espaço. Era ensurdecedor.

Esses tipos se proliferam como erva daninha. São, em sua larga maioria, homens que supervalorizam seus carros, vivem frequentando as delicatessens de postos de gasolina expondo seus bíceps musculosos, exibindo pesadas correntes no estilo gangster rapper no pescoço, dançando pagode, arrocha e forró, enquanto empunham uma latinha de cerveja, falando alto, ignorando o aviso que proíbe o som naquele estabelecimento e, pior de tudo, impondo o seu gosto musical aos transeuntes.

Acredito que há uma relação inversamente proporcional entre a potência do som e a potência dos seus donos. Mas é só uma teoria... Essa questão, porém, só diz respeito a estes ditadores musicais e suas parceiras, ou parceiros. O mais irritante de tudo é a incapacidade de compreender a importância de não invadir os espaços alheios quando se vive em comunidade. Por mim, eles podem acabar completamente surdos, desde que as sessões de audição ocorram no meio do deserto.

Confesso beirar a paranoia no quesito “não quero invadir o seu espaço”. Ainda assim, cometo deslizes. Certa feita, comprei dois brinquedos que imitam osso para Sofia e Helga. Tinha sido aconselhado por uma veterinária. Aparentemente, ao tentar roer aqueles pesados pedaços de osso processado, elas estariam prevenindo o acúmulo de placa bacteriana nos dentes. Adoraram!

No final do dia, ao chegar em casa, havia um recado me pedindo para entrar em contato a vizinha do apartamento logo abaixo do meu, D. Maria Joana (nome fictício). Nem troquei de roupa e fui lá pessoalmente. A referida senhora, não muito cordialmente, preciso ressaltar, reclamou do barulho oriundo do impacto dos novos brinquedos e o piso de lajotas do meu lar. Antes que eu pudesse tentar argumentar, um trovão ecoou na sala de jantar dela... e vinha lá de cima, da minha casa. Pedi desculpas e garanti que não aconteceria mais. Subi correndo e confisquei a nova diversão das cãs.

Nos meses subsequentes, pelos menos três vezes por semana, ao retornar do trabalho à noite, encontrava o meu quarto completamente incensado com o característico aroma da erva maldita. E, cá entre nós, não gosto do cheiro. Chegar em casa e sentir o barrunfo impregnado no lençol, no cobertor e na fronha era foda! Irritante demais. Tudo indicava ser proveniente da janela do terceiro andar, um a menos que o meu. Entretanto, não tinha como provar. Nada contra a tia queimar unzinho. Muito pelo contrário. Mas eu odeio o cheiro.

Só tive certeza quando, numa madrugada, acometido pela minha inseparável insônia, resolvi sentar ao lado da janela enquanto tocava violão e fumava um cigarro. Depois do segundo acorde, eis que sobe a fumacinha característica e impregna minhas narinas. Debrucei-me no parapeito, olhei para baixo e me deparei com uma mão feminina, apoiada na janela de baixo, segurando um baseado. A coroa do terceiro andar era maconheira. Ela que sempre entrava sisuda no elevador e mal cumprimentava as pessoas era uma chincheira profissional. Mas por que somente agora, após quase 10 anos de vizinhança, a fumaça começou a invadir meu quarto? A princípio cheguei a cogitar que ela adquirira o hábito tardiamente. Acabei descobrindo por vias transversas, contudo, que a mãe de D. Maria Joana se mudara e havia deixado o apartamento para a filha. Quando os gatos saem, os ratos fazem a festa.

Meu primeiro instinto foi o de reclamar. Fazer exatamente como ela fizera. Resolvi, entretanto, depois de refletir um pouquinho, que eu, dentro dos meus princípios de bom convívio social, poderia ser mais tolerante e flexibilizar um pouco. Afinal, fumar maconha ainda é estigmatizante nesse país e ela, uma respeitável cinquentona, estava tendo a rara oportunidade de fazer isso no conforto e segurança do próprio lar. Daquela noite em diante, então, toda vez que saía de casa, eu fechava a janela.

Tudo seguia normalmente até eu comprar duas almofadonas para Sofia e Helga. Com esta aquisição, resolvi ensiná-las a somente roer os brinquedinhos confiscados quando estivessem em cima das almofadas. Elas adoravam passar horas afiando as presas e combatendo as placas. Tive o cuidado de adestrá-las no horário do almoço, pois sabia que a senhora do andar de baixo não retornava antes das 18 horas. Não foi necessário muito tempo. Fiquei surpreendido com a velocidade em que se habituaram ao novo comando. Em três dias, estavam educadas. Ainda assim, tinha o cuidado de deixá-las brincar somente sob minha observação.

Num fim de semana qualquer, enquanto eu assistia a alguma besteira televisiva, Sofia deixou o osso escapulir da boca. Este escorregou pela beirada da almofadona e tocou a lajota. Em menos de dez segundos, o interfone tocou. D. Maria Joana estava irritadíssima com a barulheira interminável que minhas cachorras faziam, segundo a própria, arrastando um maldito osso por toda a casa. Aí pirei o cabeção! Putaquepariu! A porra do osso resvalou na lajota e a coroa aloprou! Como assim, D. Cinquentona Maconheira Descarada?! Como assim?

Respirei fundo, contei até cinco mil, mantive a calma e tentei ponderar, assumindo a responsabilidade do primeiro ocorrido, mas ressaltando que desde aquela época nada mais tinha acontecido, dos cuidados tomados, inclusive do adestramento nos horários em que ela não estava. Ainda desproporcionalmente nervosa, quiçá pela ausência de THC na corrente sanguínea, disse que eu deveria aprender a ser menos egoísta e um pouco como viver em comunidade, respeitando o espaço alheio. Foi a deixa que eu precisava:

– Justamente, D. Maria Joana. Também acho de suma importância as pessoas aprenderem a viver coletivamente, serem mais flexíveis e tolerantes para que se conviva mais facilmente com as diferenças.
– Então!
– Então, não é? Há alguns meses, o meu quarto tem sido impregnado por uma fumaça vinda do seu apartamento, pelo menos três vezes na semana. E a senhora recebeu alguma reclamação? Ao invés de reclamar, fechei a minha janela.
– Erm... Veja bem... É que eu gosto de incenso.
– Incenso?
– É... é incenso.
– Sei, sei... pois quando eu era mais jovem também fumei muito desse incenso.
– ...

Este texto foi revisado por Paula Berbert

7 Response to "VIZINHANÇA"

  1. Paula Says:

    Adoro essa história, adoro você contando essa história e adoro você escrevendo essa história! Muito bom, de cima a baixo.

  2. Alexandre Beanes Says:

    quando ouvi essa história a primeira vez me pipoquei de rir...é mesmo muito boa...
    imagino a cara do dona maria joana ao saber que você sabia que ela era uma apreciadora de entorpecentes não descriminalizados...hilário!

    abraço, mano velho!

  3. Priscila Says:

    Dona Maria Joana abusou de sua tolerância. Imagino a cara da coroa quando você revelou que sabia que ela fumava "incenso". Hilário!

    Diante de tal narrativa, certeza que não ia gostar de me ter como vizinha. Meus "incensos" me tranquilizam. Acho que não abriria mão deles, mas só acho.

    Abraço!

  4. Taisa Sganzerla Says:

    Adorei a história!! E queria eu ter essa diplomacia toda sua! Em outras palavras: teria mandado a coroa à merda na primeira oportunidade.

    Ah! E parabéns atrasado também!

  5. Mariana B. Says:

    geeeente, como eu queria ser você pra poder pegar a véia com a boca na butija...!!! kkkkkkkkk... queria muito ter visto a cara dela...
    beeeeijo!

  6. Jessy Says:

    Adoooorei! uhahuhahaha...
    Ri horrores!!
    "Como assim, D. Cinquentona Maconheira Descarada?! Como assim?" Incenso... essa é boa!

    Vizinhança é um caso sério...

    Meu problema é com o som alto aos finais de semana que não me deixam estudar! Aì tenho q estudar de noite, de madrugada...
    Boa convivência né... fazer o q!

    Beeeeijo!

  7. Unknown Says:

    Muito bem!
    Odeio ler blogs, mas passeando de site em site, acabei chegando aqui e correndo os olhos despertei interesse por alguns de seus textos.
    Você escreve muito bem e conta as coisas detalhadamente, ao mesmo tempo com humor e sarcasmo.
    Parabéns pela sua maneira de escrever e pela sua atitude polida em relação à vizinha maconheira.